Publicado em: 06 de setembro de 2018 12h09min / Atualizado em: 10 de setembro de 2018 15h09min
Na quarta-feira (29), a UFFS – Campus Chapecó recebeu dois pesquisadores no Seminário “A pesquisa em Agroecologia: potencialidades e desafios no Brasil e na Holanda”. Os pesquisadores Arne Janssen (Universidade de Amsterdã, Holanda) e Irene Maria Cardoso (Universidade Federal de Viçosa) falaram sobre “Experiências da pesquisa em controle biológico de pragas de plantas” e “A construção do conhecimento agroecológico”, respectivamente.
Eles e a professora da UFFS – Campus Chapecó, Inês Claudete Burg, integram a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA).
UFFS – Como as pesquisas do controle biológico e da agroecologia se complementam e se conectam?
Irene – Primeiro, dizemos que a Agroecologia é interdisciplinar, transdisciplinar, ela é um campo científico. Então, as pesquisas de controle biológico estão dentro desse cardápio de possibilidades. Na Agroecologia, a gente trabalha com níveis de transição. E é claro que esses níveis de transição não são como uma escadinha, degrau por degrau. As coisas vão acontecendo juntas, simultaneamente. Mas um dos níveis que a gente gosta de falar e que foi sistematizado pelo Gliessman, um pesquisador da Califórnia, é a diminuição e substituição dos insumos. Então, por exemplo, o controle biológico – você substituir um agrotóxico por inimigos naturais – já é um passo, mas não é onde nós queremos chegar. E a gente fala que só está em transição agroecológica quem quer chegar no último passo, que é o redesenho de todo o sistema agroalimentar. Então, nesse redesenho, a gente precisa pensar o controle natural, que é não precisar adicionar nada, mas o ambiente se controlar. É natural e conservativo.
Arne – Mas mesmo assim, pode ser que de vez em quando você possa ter um problema. Você pode usar outras possibilidades para solucionar o problema. Mas é preciso vigiar. E, se necessário, precisamos liberar novos inimigos naturais e pesquisar o porquê agora tem um problema e antes não havia. Aqui no Brasil, um pouco fraca na pesquisa do controle biológico é a parte teórica. Porque o controle biológico é a dinâmica populacional aplicada – tem teoria forte, matemática. Aqui, não conheço muitos grupos que tenham esse tipo de ensino. Está faltando aqui. É estranho, porque na área da Matemática o Brasil é forte. Mas dentro da Agronomia e da Biologia, não muito.
UFFS – Vocês falam muito na questão da pesquisa. Algumas coisas feitas antigamente no campo hoje estão sendo retomadas e pesquisadas. Queria que vocês falassem um pouco sobre o papel das universidades no sentido de pesquisar assuntos que estavam, em determinado momento, somente no campo.
Irene – A gente precisa acabar com a arrogância científica. Esse negócio de falarmos ‘ah, isso é certo porque está provado cientificamente’ é uma mentira, porque a ciência nunca comprova 100% de nada. Tudo está em evolução. Então tudo o que hoje está “provado cientificamente”, amanhã pode ser destruído também cientificamente. Aí, colocar a ciência como se fosse a detentora da verdade é muito perigoso. Então, a primeira coisa é a gente saber que todas as pessoas, das mais simples às mais complexas, das mais pobres às mais ricas, têm conhecimento. A diferença é que as pessoas mais pobres e humildes precisam usar muito a criatividade para sobreviver. E elas precisam, no caso dos agricultores, conservar a base dos recursos naturais para que as próximas gerações sobrevivam. Então, elas não podem destruir o solo e a água, porque precisam disso para a manutenção das gerações futuras. Além disso, a agricultura familiar não tem a roça somente como um lugar de produção – é o lugar de vida. Ali o agricultor cria os filhos, tem relações com os vizinhos, tem a espiritualidade. Isso, então, traz uma complexidade de relações que permite muitos aprendizados. E o que a gente fez com a ciência, chamada moderna? Isso é uma crise paradigmática, uma crise da sociedade. Tiramos o valor, a importância dessa sabedoria e colocamos tudo no conhecimento científico. Então a primeira coisa que a universidade precisa fazer é ser humilde e entender que precisa criar as possibilidades de interação dos conhecimentos. Não quero dizer com isso que o conhecimento científico e a pesquisa não sejam importantes, mas essa pesquisa só vai ter importância se tiver interação com a sabedoria popular. E não é só na Agroecologia, é em todos os campos do conhecimento. Pode ser que algum professor da universidade não saiba produzir sem agrotóxicos. Mas que ele saiba disso e tenha a humildade de aprender com os que sabem. Se a universidade não tem a competência de produzir sem agrotóxicos, que ela tenha a humildade de aprender com quem sabe, e aí a gente vai, todo mundo, aprender coletivamente.
Arne – Só para dar um exemplo simples, temos a questão do ingá. Os agricultores já estavam plantando o ingá no meio do café, sem saber de todas essas relações dos inimigos naturais. O ingá é o controle natural. E no mesmo tempo, deu para perceber que esses agricultores, não só com o ingá, mas com sistemas bastante diversificados, não tinham problemas com pragas. Então, tem, lá no campo, uma solução. Qual é? Em termos gerais, a biodiversidade. Mas como funciona? Aí que pode entrar a universidade e entender melhor os processos. E isso, você pode, depois, em outros campos, em outras áreas.
UFFS - Qual o panorama das pesquisas das duas áreas no Brasil e em outros lugares do mundo.
Irene – A compreensão que a gente tem da Agroecologia no Brasil, enquanto movimento, ciência e prática (são três dimensões: você tem a ciência em diálogo com a prática dos camponeses e camponesas, mas isso em rede, construindo um movimento de transformação) é muito pioneira. Isso é uma coisa muito brasileira, e tem servido, inclusive, de lição para outros países. A Política Nacional de Agroecologia é um exemplo para o mundo. O mundo começou a prestar atenção nisso, mas a pesquisa no Brasil, enquanto Mestrado e Doutorado, precisa avançar nessa compreensão. E no cerne da Agroecologia está esse diálogo entre camponês e ciência. Em outras áreas que contribuem para o avanço da Agroecologia, como o controle biológico, acho que tem outros países mais avançados. E por que no Brasil a pesquisa em controle biológico não avança? É compreensão de como deve-se dar a pesquisa. Então ficamos com muitos pesquisadores dessa área, a Entomologia (que é uma área muito sensível, pois é onde estão as chamadas pragas), dizendo a todos os cantos que não é possível produzir sem agrotóxico. Isso quando já se sabe que na Dinamarca já há data para que toda a produção seja orgânica, na Holanda já tem muito controle biológico, na Espanha e em outros lugares também, e no Brasil ainda se insiste em dizer que a gente não consegue produzir sem veneno. Então acho que isso é um atraso. É não conseguir compreender para onde está caminhando a humanidade e quais os sinais que inclusive os países ricos estão dando.
Arne – Eu tive essa discussão com o pessoal da Entomologia várias vezes. Por que aqui (no Brasil) não saem soluções dos laboratórios? Uma coisa é que quando você vai falar com as pessoas elas dizem ‘aqui tem muita biodiversidade, é muito complexo, muito difícil aqui’. Mas tem vários países tropicais onde funciona, incluindo aqui. Tem projetos de controle biológico aqui, de grande escala, que quase todo mundo esqueceu porque está funcionando. Eles não precisam do controle biológico clássico. A África não tem biodiversidade, então dois dos melhores controles biológicos clássicos estão na África. Então, não tem essa desculpa. As universidades daqui têm os três pilares: ensino, pesquisa e extensão, que outras universidades não têm.
Irene – Acho que é a arapuca do agronegócio e a arapuca do veneno. Então entrou nessa arapuca, não sabe como sair e tem premissas falsas. Uma delas é que temos biodiversidade demais e que por isso a gente precisa usar veneno – e é justamente ao contrário. Outra: que a gente não tem inverno rigoroso suficiente que quebre o ciclo das pragas – também é o contrário. Nós temos uma biodiversidade tão rica que ela se autocontrola. E precisamos entender que para problemas de biodiversidade a gente lida com biodiversidade. Um exemplo que gosto de dar é o de um agricultor da Zona da Mata (MG) que tinha problema de pássaro preto que comia o arroz que ele produzia. Qual foi a solução que ele pensou? Construiu umas gaiolas bem grandes, comprou, no açougue, umas carnes, colocou dentro das gaiolas e fechou as portas. Assim atraiu urubus que, ao baterem as asas, espantaram o pássaro preto. Então os problemas de biodiversidade se controlam com biodiversidade. Essa premissa de que temos biodiversidade demais é falsa. É uma arapuca da indústria do veneno para nos colocar prisioneiros disso. Assim como a arapuca da fome, – que diz que temos que produzir, produzir, produzir para alimentar o mundo. Temos alguns estudos que mostram que até 60% do que produzimos é perdido. Tem outros que mostram que o problema da fome não é e nem nunca foi a produção, mas quando há fome há muito problema associado com guerra, com questões climáticas sérias, com falta de dinheiro, com falta de salários compatíveis, com monocultura, com uso de agrotóxicos. Acho que a universidade tem que sair dessas premissas falsas e dessa arapuca. E tem que entender que há como fazer diferente, porque tem gente fazendo diferente. Então, se existe gente fazendo diferente, é possível sim. Agora, isso exige a tomada de decisões que pode ferir interesses econômicos muito poderosos.
UFFS – Quais as potencialidades econômicas para os camponeses ao produzirem com a Agroecologia?
Irene – A primeira é a autonomia. Você não ficar refém do que está fora da sua propriedade. Como a gente ganha dinheiro? É de duas formas: vendendo ou deixando de comprar. Então, a primeira é a autonomia de não precisar comprar os insumos. A outra, que é mais importante que essa, é a autonomia alimentar. Porque a partir do momento que você passa a se alimentar com qualidade, você não precisa comprar o alimento e o remédio, já que esse alimento vai te dar saúde. Depois, é como você vai vender esse produto, com um lucro muito mais direto. Tem gente que diz que a produção do alimento orgânico é mais cara. Não é verdade. Ele pode ser mais caro, mas conheço N casos que não é mais caro. A questão é que os produtores querem ter um saco de produto, um saco de dinheiro, mas no fim vem junto um saco de dívida. E em último lugar é o preço dos orgânicos, que é um grande debate. Tem gente que fala que é muito caro, e outros que dizem que pode ser o mesmo preço do convencional. Tem agricultores que falam, inclusive, que pode ser até mais barato. Mas aí traz uma outra discussão: qual é o preço justo para os agricultores? Porque queremos ter um alimento bom, barato e pagar barato. A gente prefere comprar um celular ou um carro do ano, mas pagar barato num alimento que é a nossa fonte de vida. Então o que é um alimento caro, o que é barato? Aí tem um segundo ponto: concordo com isso, mas eu não tenho dinheiro. Então vem a discussão do salário. Como é que fazemos para ter salários compatíveis com a compra de alimentos de qualidade? As pessoas precisam ter consciência que devem investir em alimentos de qualidade. Por fim, há pessoas que dizem que esse alimento é muito difícil de encontrar. Também não é verdade. Depende de como você estabelece as redes para que tenha acesso a esse alimento. Aí falam: ‘é preciso tempo’. As pessoas trabalham de segunda a sábado, com horários apertados. Portanto, precisam pensar na possibilidade de não morarem em grandes centros – já que precisamos revitalizar o campo e as cidades. E, segundo, a gente precisa começar a repensar nossa carga de trabalho. O brasileiro trabalha muito. Quarenta e quatro horas semanais é muito mais do que os países da Europa – pelo menos a parte da Europa Ocidental. A Holanda trabalha menos de quarenta horas por semana. Então, apoiar a ideia de menos horas semanais de trabalho, discutir um planejamento urbano em que não seja necessário ficar duas horas dentro do ônibus para que as pessoas possam começar a construir suas redes para ter acesso aos alimentos, tudo isso é importante. A gente precisa de uma parceria campo-cidade: que ambos se entendam melhor, e todos vão ganhar: agricultor e consumidor.
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