Publicado em: 27 de abril de 2021 14h04min / Atualizado em: 27 de abril de 2021 15h04min
Um livro sobre assunto desconhecido, uma vontade - motivada pela mãe, que faleceu durante a jornada da graduação -, uma formação, um mestrado, o ingresso no doutorado.
Mesmo resumido, o caminho de Leticia Maria Venson, graduada e mestra em História pela UFFS - Campus Chapecó, já é incrível. Os detalhes dessa trajetória da jovem, sexta de sete filhos, que saiu de Palma Sola para conquistar sua formação universitária e seu diploma, são ainda mais surpreendentes.
Durante o ensino médio, ainda em sua cidade, Leticia trabalhou como locutora e como operadora de mesa em uma rádio comunitária já pensando em morar em Chapecó para estudar. Ela guardou dinheiro durante esse tempo para conseguir se manter nos primeiros meses. Mesmo assim, precisou da ajuda de irmãs que moram em São Paulo.
Depois, começou a trabalhar em um restaurante aos fins de semana para conseguir pagar as contas e se manter na cidade. Em outubro de 2014, a mãe de Leticia ficou doente e, apenas um mês depois, faceleu.
Antes do falecimento, a mãe da jovem teve uma conversa muito séria com ela, algo que nem os demais membros da família sabiam: ela pensava, na época, em desistir do curso. “Minha mãe falou que mesmo que ela não estivesse aqui, ela queria muito uma filha professora”. Leticia conta que a irmã mais velha tem graduação, mas fez a distância, e a mãe gostaria que uma das filhas frequentasse presencialmente a universidade (pela vivência e aprendizado proporcionados pelo estudo presencial). “Na minha formatura, chorei muito, mas não de emoção, era de falta. Queria que ela estivesse lá para ver aquele momento”, emociona-se.
A pesquisa na trajetória acadêmica de Leticia
Leticia optou por seguir estudando. Em 2015, o professor Matheus Gamba Torres (que já não está mais na UFFS) solicitou que os estudantes fizessem um trabalho com fontes primárias para uma apresentação.
A jovem tinha folgas às quintas-feiras e decidiu pesquisar uma suposta ida de um senhor chapecoense para a II Guerra Mundial, conforme havia ouvido de um dos chefes do local onde trabalhava. Buscou a informação na Hemeroteca e, com o tempo escasso, levou fotos do que encontrou para casa, para examinar atentamente, conforme orientação do próprio professor.
Ela não encontrou o que procurava, mas em um trechinho de 15 linhas encontrou os termos “Colônia Militar do Xapecó”. “Eu não sabia do que se tratava porque eu nunca tinha ouvido sobre isso. Joguei no Google e apareceu um TCC de Direito. E só”. E as buscas continuaram, até que ela encontrou a tese do professor Antônio Carlos Myskiw, da UFFS – Campus Realeza. Enviou um e-mail a ele, que retornou com documentações e possibilidades para que ela constituísse seu trabalho de conclusão de curso (TCC).
Muito antes, portanto, de chegar à última fase do curso, Leticia começou sua pesquisa. Depois, em 2017, passou a ser orientada pelo professor José Carlos Radin e defendeu o trabalho em 2018.
Por insistência dele, tentou a seleção no mestrado na UFFS. Ela conta que não acreditava muito na aprovação, porque fez o projeto ao mesmo tempo que a carteira de habilitação e os estágios da graduação. “Não imaginava que conseguiria passar. E ainda fiquei em segundo lugar, conseguindo a Bolsa Demanda Social da Capes”.
Mas até chegar ao mestrado, Leticia precisou trilhar um caminho difícil durante a graduação. Pela manhã, estudava. Trabalhava de 13h30 às 21h30 em uma sorveteria. Normalmente, chegava em casa por volta das 22h e, até 2h, 3h da manhã, estudava, fazia trabalhos.
Quando chegou, não conhecia ninguém. Por um site, arrumou um lugar para dividir uma moradia – que durou três a quatro meses. Foi para um porão, mas por ser longe do trabalho e pela necessidade de ficar com a mãe no hospital, acabou indo para o centro de Chapecó.
Com os estudos, entretanto, ela comenta que não teve tantos problemas: aprendeu a se organizar e desenvolver essa habilidade durante a graduação, de modo a não deixar trabalhos acumularem, já que sabia que não teria tempo para fazer depois. Mudou sua vida social – praticamente só estudava e trabalhava -, além de visitar pouco a própria família. As folgas eram praticamente exclusivas para os estudos.
“Acho que eu fui uma das primeiras a ter orientador, porque eu fui atrás do orientador muito antes, no pré-projeto já tinha orientador, enquanto os meus colegas começaram a ter orientador a partir do TCC 1 mesmo, enquanto eu já fui com meu trabalho estruturado com o professor Radin. Ele até brinca comigo porque eu cheguei com a problemática e com as fontes. Então ele disse que eu facilitei o trabalho, porque eu era muito ansiosa, na verdade sabia que não ia dar conta se eu deixasse os trabalhos acumularem, então ia fazendo isso”. Mesmo com a sobrecarga, ela ainda adiantou uma disciplina.
“Se não fosse UFFS, eu não teria feito uma graduação em primeiro momento”
Mestrado
As pesquisas sobre a Colônia Militar do Xapecó seguiram no mestrado. “O TCC não é tão aprofundado, é mais para apresentar o tema. No mestrado, por ser bolsista, consegui ir a eventos. Inclusive um no Rio de Janeiro que foi algo muito marcante, porque na graduação só conseguia ir nos eventos da UFFS, inclusive pagando horas (no trabalho) para poder participar”, conta ela.
Segundo Leticia, além de apresentar sua pesquisa durante o evento na UNIRIO, ela buscou mais fontes, foi ao Arquivo Nacional e em um arquivo do Exército.
Durante o tempo do mestrado, ela participou de outros eventos científicos: em Florianópolis, Passo Fundo, Erechim… “tive uma construção de conhecimento muito grande, porque eu tive contato com outros pesquisadores, com doutores, pós-doutores, outras visões sobre o meu trabalho, e isso foi muito importante”.
O que mudou, também, foi a relação com os colegas. Na graduação, poucas amizades feitas durante o curso, mas que ficaram para a vida. E no mestrado, o caminho foi de ajuda mútua, companheirismo e uma conexão muito interessante.
Sobre a pesquisa
As descobertas de Leticia sobre a Colônia Militar do Xapecó são muitas. “A colônia foi instalada em 1882 e ficou em funcionamento até 1908, então ela teve como tentativa controlar a região, porque naquele momento essa região pertencia ao Paraná. Tinha, também, a questão de Palmas, que era Argentina, tentando pegar um pedaço dessa região para anexar ao território deles, à Província de Missiones”.
Portanto, conforme Leticia, houve um receio por parte das autoridades brasileiras, que criaram a colônia em 1859, mas que foi instalada somente 1882. “Não há documentação que diga, de fato, porque que aconteceu isso, esse retardamento de mais de 20 anos, mas agora, durante o mestrado, eu levantei algumas hipóteses com as fontes que eu encontrei lá no arquivo do exército: uma delas seria devido à Guerra do Paraguai”.
Com o conflito, o Ministério de Guerra não dispunha de recursos para a instalação da colônia, e o Brasil, naquele momento, preocupou-se em instalar colônias militares em pontos mais estratégicos. Além disso, conforme ela levantou durante as pesquisas, faltava um planejamento das colônias militares.
“As colônias militares foram instaladas nas localidades consideradas estratégicas militarmente e economicamente, mas não havia uma organização”.
Nesse contexto, aparece a figura do José Bernardino Bormann, cujo nome está estampado em escola, rua, farmácia, erva-mate, mas que pouco se sabe a respeito. Leticia explica: “ele foi um gaúcho de Porto Alegre que participou da guerra do Paraguai e, inclusive, ganhou uma medalha humanitária por sua participação na guerra, já que tratou os doentes de cólera. Descobri, no mestrado, que ele fez parte dos Voluntários da Pátria. Fiquei sabendo que quem era dos Voluntários recebeu auxílios e benefícios. Ele recebeu terras depois, então não foi por livre e espontânea vontade, havia interesse econômico nisso”.
Conforme ela, Bormann foi político e escritor. Segundo ela, escreveu vários livros, inclusive tem um sobre a Guerra do Paraguai, e outro que ele escreve durante um momento que estava na colônia militar, o “Memórias da Revolução Federalista no Estado do Paraná”. Essa obra foi lançada em 1901, e tem dois volumes.
Durante a Revolução Federalista, mandaram prendê-lo porque supostamente ele estava ajudando os revolucionários (federalistas), o que ele não poderia fazer, já que era a pessoa responsável pela ordem. Ele provou sua suposta inocência, e nesse livro ele mostrou o que fez para, como explica Leticia, “limpar sua memória”. “Tanto que, no comecinho do livro, ele fala: quem gostaria de deixar esse tipo de coisa pairar sobre a sua memória? Então ele tenta construir essa memória de uma forma mais heroica e positiva. E, se a gente conversa com as pessoas mais velhas e os militares aqui da região, percebe que ele conseguiu o que desejava, porque ele é visto como um herói e como um desbravador de Chapecó. Tem umas pessoas que o consideram assim”.
Leticia conheceu a bisneta de Bormann em 2019. Descobriu que teve só uma filha. Ele teve três casamentos, mas teve só uma filha com uma indígena aqui da região, inclusive. Porém, na história oficial, nas fontes e documentações analisadas por Leticia, em nenhum momento aparece essa segunda mulher, só aparece a primeira mulher que era sobrinha dele.
Na pesquisa, Leticia não encontrou documentação se essa esposa morou aqui em Chapecó ou não, porque ela faleceu em 1895 e ele estava aqui ainda. A própria família não sabia que era descendente de indígena. A bisneta disse que na família se perguntavam quem era a bisavó, e não havia essa resposta. Então, ela foi procurar e acabou descobrindo que era uma indígena. “Encontrei a certidão de óbito da bisavó dela, da filha do Bormann, e o nome está errado, está com o nome da terceira mulher dele. Portanto, tem toda uma confusão nas documentações, que eu acho que é proposital para não mostrar que um militar teve envolvimento com uma indígena”, relata a pesquisadora.
Livro, dissertação e futuros projetos
O livro escrito por Leticia e lançado em agosto de 2020, “Colonização Militar no Oeste Catarinense", é resultado do TCC. O suporte financeiro para a publicação veio da venda da casa que a mãe de Leticia tinha em Palma Sola. “A dedicatória é pra ela e para as mulheres da família”, revela.
Da dissertação, Leticia deve publicar outra obra, já que recebeu uma proposta da mesma editora, que tem a intenção de criar uma coleção com relação às colônias militares.
O recorte temporal do TCC e da dissertação é o mesmo, e a opção foi por aprofundar a pesquisa e consultar novas fontes. Conforme Leticia, no TCC “a gente falava sobre as memórias que as pessoas têm sobre o Bormann, sobre como era o Bormann na Colônia Militar, como era visto pelos militares e quem são esses militares, a situação agrária e social da Colônia Militar, dos indígenas que viveram na região, porque, por mais que não haja muitas fontes sobre isso, há algumas. Levantamos a possibilidade de possíveis libertos e escravizados aqui na região”.
Segundo Leticia explica, essa possibilidade é investigada porque em Palmas existiam várias fazendas de escravizados. Após a abolição, há o registro de um relatório bem curtinho, escrito pelo Bormann, em 1888, no qual, conforme Leticia, ele fala: “estou mandando o pessoal para Palmas porque tem libertos lá e o pessoal está com medo que eles façam bagunça e algazarra, então vou lá para conciliar para trabalharem, vou lá dar uma orientação para essas pessoas”.
O senso de 1890 da Comarca de Palama mostra negros na região, portanto a pesquisadora levanta a possibilidade de que alguns, que eram escravizados, acabaram se estabelecendo no local.
Uma limitação encontrada por Leticia foi que as fontes são escritas por militares. Faltaram, nessas fontes, informações sobre as pessoas das colônias militares: como são, quem morava ali, o que eles faziam, o que eles plantavam...
A ideia, segundo ela, é que a colônia fosse autossuficiente, algo que nunca foi. “Depois, inclusive, ela é considerada um fracasso pelo Ministério da Guerra. Particularmente, não tinha noção, no início, dessa forma, porque acho que sucesso não significa somente sucesso econômico. E não é só fracasso e sucesso, tem outras coisas no meio disso, não dá pra polarizar entre o bem o mal. Mas, descobrimos que aqui eles plantavam, inclusive o pessoal acredita que a uva foi implementada pelos colonos italianos, mas não, já existia plantação de uva aqui durante a Colônia Militar. Inclusive eles faziam um vinho e faziam cachaça também, porque eles plantavam cana-de-açúcar aqui, então é algo que veio antes e o pessoal acredita que foi depois. Mas não, na documentação mostra que faziam rapadura, faziam aguardente e faziam vinhos também”, destaca ela.
Pesquisa segue no doutorado
Antes mesmo de defender o mestrado, Leticia foi aprovada em dois doutorados e optou por estudar na Unioeste. Em princípio, a pesquisa será em torno da questão agrária do território que compreendia a Colônia Militar do Xapecó. “A Colônia Militar era responsável por dar lotes de terras para os colonos que viessem pedir. A terra não era comercializada nessa época, ela era doada. Depois de dois anos que você plantou ali ou você criou os animais nessa terra, você podia pedir o título definitivo”, explica ela.
Porém, conforme os registros, Leticia pontua que durante todo o funcionamento da colônia foram expedidos somente 11 títulos definitivos e mais de cem títulos provisórios. “Só que a colônia foi para o regime civil, não existia mais colônia, e essa questão territorial não ficou resolvida. Teoricamente o Estado criou mecanismos para que essas terras viessem a serem legitimadas, mas efetivamente não foram legitimadas porque os moradores que tinham essa terra eram os caboclos, eram as pessoas que não tinham condições financeiras, e, naquele período, um agrimensor era muito caro para você conseguir pagar. Então, para você pelo título definitivo, tinha que pagar um agrimensor para ir medir as suas terras, para depois você conseguir pagar toda a burocracia, papelada, para você legitimar esse território. E isso não veio acontecer. Uma ou duas pessoas conseguiram legitimar de fato essa terra, porém antes do Estado criar esse ‘mecanismo de legitimar’, já tinha distribuído parte desse território, que teoricamente tinha dono, para empresas de colonização”.
Como conta Leticia, as pessoas que já estavam no local, antes dessa entrada do Estado, foram retiradas de seus territórios. Há, inclusive, ações coletivas em que parentes dessa população buscam reaver esses territórios. “Ainda tem esse território ali que não está legitimado, não está regulamentado, e acredito que no nosso território aqui na região Oeste tem muito disso ainda”, finaliza.
Nos próximos meses, em parceria com o professor Antonio Myskiw, ela lançará mais um livro. Dessa vez, com capítulos dos mestres em História pela UFFS, cujo título é "Fronteiras, Migrações e Sociedades no Brasil Meridional".
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