Publicado em: 21 de agosto de 2023 12h08min / Atualizado em: 21 de agosto de 2023 17h08min
Descobrir o que não foi escrito, levantar evidências a partir do que restou de outra época, de momentos históricos. O que fica embaixo da terra também “fala”, se percebido, coletado e estudado adequadamente. É isso o que faz a equipe do Laboratório Universitário de Patrimônio e Arqueologia (LUPA) da UFFS, sob a liderança do professor Jaisson Teixeira Lino, que recentemente foi contemplado com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa (PQ) do CNPq.
Para Lino ter sido contemplado com uma bolsa de Produtividade em Pesquisa foi algo inesperado. “Na nossa área é algo extremamente importante e muito concorrido. Foi o primeiro projeto que encaminhei e já consegui emplacar”, comenta. Ele encara isso como um prêmio de seus pares, uma forma de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido.
Com a bolsa, mais a aprovação no edital Pró-Humanidades do CNPq, o professor agora intensifica uma grande investigação científica, em outro país, para buscar o resgate de memórias muito importantes para a América Latina: aquelas relativas à Guerra do Paraguai, que ocorreu entre 1864 e 1870. A pesquisa já havia começado com trabalhos de campo no Paraguai, a partir de recursos de editais internos, mas com as aprovações será possível desenvolvê-la ainda mais.
Agora, Lino, juntamente com os professores Antônio Luiz Miranda e Émerson Neves da Silva, além de estudantes da UFFS e colaboradores externos – inclusive a arqueóloga Isabella Brandão de Queiroz, especialista em esqueletos, e pesquisadores paraguaios, como a arqueóloga do governo paraguaio Ruth Alison Benítez – farão escavações, ações educativas, exposições, artigos e, certamente, diferença na história contada sobre o conflito.
O professor explica que o projeto “Materialidades do Conflito e do Pós-conflito na Guerra do Paraguai” é interdisciplinar e contempla arqueologia, patrimônio, história e memória, com foco maior na arqueologia. Serão duas frentes: a primeira de arqueologia propriamente dita, com escavações nos campos de batalha, resgate de esqueletos e vestígios em território paraguaio (onde aconteceu a maior parte das batalhas); e a segunda, que é estudar a memória e o patrimônio do conflito nesses campos de batalha, ou seja, como a memória é ativada e como as pessoas se relacionam com esses lugares de memória (se há preservação, museus, monumentos, celebrações, ritos ou se há apenas esquecimento).
“É um trabalho muito grande, que certamente vai nos ocupar por anos e anos”, ressalta o professor. O momento, segundo ele, é de concentrar a atuação em alguns campos de batalha, como o de Humaitá, onde ocorreram os maiores combates e onde houve presença maciça de brasileiros. Ao longo das etapas, o grupo alternará a presença em campo com trabalhos documentais e em laboratório.
Lino ressalta que, até hoje, o Paraguai tem problemas sociais, dos quais, grande parte, são resultantes da guerra. Na época do conflito, o país estava em processo de geração de riqueza com industrialização maior que a do Brasil, inclusive. Pela dificuldade de escoamento da produção, iniciaram conflitos diplomáticos: o Paraguai ocupou terras na Argentina e no Brasil, que, em resposta, começaram a atacar. A partir daí, conforme o professor, Argentina, Brasil e Uruguai se juntaram. A destruição foi tamanha que, na fase final da guerra, mulheres e crianças foram para as batalhas, já que eram as últimas pessoas que restaram vivas. “Há histórias cabulosas, como crianças que pintavam bigodinho com carvão para disfarçar que eram adultos e iam à luta para serem mortos. Foi uma matança no final da guerra”, explica o professor.
Depois do final do conflito, o Paraguai nunca se recuperou plenamente. Lino explica que governos fantoche, controlados por Brasil e Argentina, estiveram à frente do país durante certo tempo. “O Paraguai vai viver de golpes e mais golpes de facções políticas que tentam ascender ao poder depois do final da guerra. Continuam os problemas, guerrilhas e até hoje o Paraguai enfrenta as consequências”, pontua.
Contribuições da arqueologia
Lino ressalta que muitos livros sobre a história da guerra foram feitos, mas quase nada foi realizado em termos de arqueologia. “Isso é uma grande novidade do nosso projeto e uma grande nova possibilidade de contribuir muito para a ciência, não só para a arqueologia, mas para as Ciências Humanas como um todo. Se estuda muito do ponto de vista da história, mas da arqueologia tem alguns poucos trabalhos feitos, alguns por paraguaios e outros por argentinos. Os campos de batalha estão lá para ser muito bem estudados do ponto de vista da ciência arqueológica. Trazer novos dados a partir do que vamos escavar, encontrar. Os esqueletos trazem muita informação sobre aqueles que se envolveram nos conflitos, além de artefatos e objetos. A arqueologia vai ajudar a valorizar o patrimônio cultural, ajudar a sensibilizar as pessoas à preservação”, comenta.
Conforme Lino, há amadores escavando, realizando um trabalho que deveria ser feito por profissionais. Não há quase recursos do governo paraguaio para isso. Segundo ele, a pesquisa terá um viés importante também para a economia local, devido à contratação de pessoal, assim como os gastos com estadia e alimentação das equipes. O professor ressalta que a proposta é que as crianças e jovens das escolas da comunidade também acompanhem os trabalhos, visto que a proposta do CNPQ é que a divulgação científica vá para além do meio acadêmico.
A ideia é montar um laboratório e um museu na comunidade de Humaitá, para que as pessoas possam conferir o que está sendo coletado e tenham contato com os objetos. Segundo Lino, há, inclusive, uma discussão a respeito do repatriamento patrimonial de coisas que saíram do Paraguai e vieram para o Brasil e nunca foram devolvidas. “Há um grande objetivo de pensar que o Brasil tem um compromisso com o Paraguai em relação à guerra, em, pelo menos, gerar conhecimento, projetos de educação e de valorização patrimonial”, comenta.
As descobertas podem ter duas vias, conforme o professor: confirmar informações que já estão documentadas (e que possuem problemas e podem conter inverdades) e fazem parte da história; ou gerar novos dados. “A maior importância da arqueologia é esta: a partir de fontes diferentes, corroborar ou mostrar contradições no que já foi produzido com relação à guerra”, destaca.
Nesse sentido, ele reforça que o mais interessante da arqueologia é justamente a descoberta. “Não sabemos o que veremos lá. É surpreendente, são muito novos elementos que podemos trazer com a arqueologia. Além disso, a gente pode ‘tocar’ o passado. Resgatando os materiais, eles serão levados a um museu, uma exposição, para que as pessoas vejam, tenham contato. Isso aproxima muito mais a pessoa do passado do que um documento. É outra relação com o passado”, aponta.
Início dos trabalhos
Os estudantes que participam da pesquisa foram treinados antes da ida ao Paraguai. Foi criado um modelo de sítio arqueológico para que fosse possível ensinar a eles como realizar as escavações, para que chegassem no local já sabendo como proceder. Os arqueólogos paraguaios que trabalharão com o grupo também levarão estudantes para auxiliar, assim como as próprias pessoas da comunidade, que serão treinadas e guiadas pela equipe.
Conforme Lino, é muito pequeno o número de arqueólogos no Paraguai e, por isso, é grande a vontade que os jovens locais se engajem, pois trabalhando com isso podem despertar o desejo de seguir os estudos. “Penso que em médio/longo prazo, isso vai fomentar a formação de pesquisadores no Paraguai. Tomara que aconteça! Quero muito que eles possam fazer esse trabalho por eles. Mas por 10 a 15 anos, certamente estaremos por lá, realizando as pesquisas”, comenta.
No mês de junho a equipe foi para o Paraguai para realizar avaliação arqueológica e, assim, definir os primeiros locais a serem escavados. A ideia é intensificar as escavações neste segundo semestre e no próximo ano trabalhar no laboratório com o material encontrado.
Laís Amanda Balzan, do curso de História do Campus Chapecó, começou como voluntária e se tornou bolsista do CNPq no projeto do professor Lino. Ela considera essa uma “oportunidade sensacional” de aprofundamento em um tema que é tratado de forma superficial no ensino básico, especialmente por poder ver de perto, com os próprios olhos, as consequências da guerra e que estão até hoje vivas no cotidiano do povo paraguaio.
Ela pontua também que a descoberta é estimulante, pois a pesquisa não trará apenas a confirmação dos fatos da guerra, mas especialmente questões nunca exploradas. “Eu vejo como uma oportunidade de crescimento para mim muito grande na formação acadêmica. A gente faz licenciatura, mas é sempre bom lembrar que a História não é só entre as paredes da sala de aula. A gente produz ciência, produz pesquisa e essa parte também é muito importante”, ressalta.
“Às vezes, quando você entra na universidade, parece muito distante. Parece que só os grandes historiadores fazem pesquisa, que você vai demorar muito pra chegar lá. E não é, né? Você tem que agarrar as oportunidades que a universidade oferece. E essa oportunidade do projeto Paraguai a gente quer escrever, produzir muito em cima ainda, e vai ser uma experiência muito rica, porque ela é pouco explorada”, destaca Laís.
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