Publicado em: 06 de junho de 2024 10h06min / Atualizado em: 07 de junho de 2024 14h06min
A catástrofe vivida pelo Rio Grande do Sul tem mostrado que o Brasil precisa repensar suas ações nas mais diversas áreas, entre elas está a da alimentação. O conceito de segurança alimentar pressupõe a disponibilidade para a população de alimentos na quantidade e na qualidade nutricional necessária, assim como o acesso de forma constante, regular e estável. Mas, para além disso, conforme o professor Antônio Inácio Andrioli, da UFFS – Campus Chapecó, situações como a vivida pelos gaúchos demonstram que é urgente que se pense na soberania alimentar.
Segundo o professor, a soberania alimentar “prevê a autonomia de povos e regiões em produzir seus próprios alimentos, sem depender de poderes externos. Portanto, com direito à autodeterminação para decidir o que, para quê, como e para quem o alimento é produzido. Nesse sentido, a soberania alimentar reforça a segurança alimentar, mas a segurança alimentar não garante a soberania na produção, industrialização e, em especial, no abastecimento de alimentos, estando constantemente suscetível a crises, a movimentos especulativos e problemas na distribuição”.
Andrioli afirma que em contextos de guerras, catástrofes e em tempos de aprofundamento dos problemas climáticos e ambientais, “é urgente que a produção de alimentos seja mais regional e menos global. Tanto em função da maior facilidade de acesso que a produção regional possibilita, quanto em decorrência da necessidade de diminuirmos o desperdício de energia decorrente dos longos caminhos de transporte e suas emissões, também responsáveis pelo aquecimento global”.
O professor afirma que é necessário um maior apoio a redes locais de produção e comercialização de alimentos, estimulando novos tipos de mercados, como os institucionais (por parte de governos) e os geridos pela sociedade civil organizada. “Na lógica do mercado capitalista, que transforma comida em mercadoria, também não há uma preocupação com reservas de alimentos, porque a preocupação maior é o ganho a curto prazo, a não ser para fins especulativos, o que acaba encarecendo e dificultando o acesso dos que mais deles necessitam”, explica.
“Se o acesso ao alimento é um direito e a comida não é uma mera mercadoria, é possível planejar a sua produção e distribuição de acordo com as necessidades da população e preparar a sua disponibilidade considerando riscos, interrupções e dificuldades de abastecimento”, comenta Andrioli. Ele ressalta que o acesso à comida não pode ser dependente de monopólios de abastecimento. “Infelizmente, essa tem sido a tendência mundial e no mesmo período em que surgem as crises de abastecimento”, diz.
Crise de abastecimento
Para ilustrar os reflexos da crise de abastecimento, Andrioli utiliza o exemplo dos combustíveis. Diante de poucos dias de interrupção do transporte, os consumidores ficam sem o produto. “A única solução encontrada, nessas situações, parece ser a corrida em busca de combustível por parte da população, que decide, de forma espontânea e desorganizada, abastecer seus veículos, ocasionando filas, altas de preços e pouco tempo de deslocamento na sequência”, exemplifica.
Se uma situação semelhante ocorresse com os alimentos, “dependendo de grandes supermercados concentrando os produtos, a população correria o risco de morrer de fome, certo? Mas é isso que pode acontecer quando as cidades passam a ter o abastecimento interrompido, as populações precisam ser deslocadas e permanecem em abrigos, dependendo de doações. E estocar comida em casa, assim como no caso do combustível, não é uma solução para todos”, pontua Andrioli.
O professor diz que essas experiências de crise de abastecimento alimentar foram muito comuns em situações de guerra e pós-guerra, especialmente na Europa. Isto explica sua política agrária até hoje, baseada em subsídios que estimulam a agricultura local, protegendo-a de importações. “Infelizmente, essas políticas públicas foram cada vez mais diminuídas com a liberalização de mercados nas últimas décadas, que estimulou as importações, a especulação com alimentos e a monopolização do abastecimento”, lamenta.
“Entretanto, com a pandemia de Covid-19, o aumento das guerras e a ocorrência de catástrofes climáticas, a insegurança alimentar voltou a crescer no mundo. Isso aumentou as discussões sobre a necessidade de manter maiores estoques públicos de alimentos e as compras diretas de agricultores, tanto para enfrentar choques agudos de oferta ou os que ocorrem em casos de pandemias, guerras e catástrofes ambientais”, ressalta o professor.
Produção de alimentos
Andrioli afirma que o Brasil abandonou a política de estoque de alimentos nos últimos 20 anos, mas voltou a discutir o assunto, com o fortalecimento da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a integrando nas políticas públicas de combate à fome. “Após 6 anos de desconstrução dessas políticas, a Conab retomou no ano passado a sua política de estoques públicos de alimentos. E a grande vantagem é que temos condições de aumentar a produção de alimentos no Brasil, diferente da maioria dos demais países, dando uma nova dimensão a esse tipo de experiência já exitosa em muitos lugares do mundo”, comenta.
O professor ressalta que, considerando as dimensões continentais do país, o problema não é a falta de áreas de cultivo, de produtividade dos solos, de tecnologia e nem de gente para produzir. “O que nos afeta de maneira decisiva é a política pública baseada no estímulo a monoculturas destinadas a agroexportações de commodities, diminuindo a produção de alimentos básicos, inviabilizando a reforma agrária e a agricultura familiar. O êxodo rural só vem aumentando nas últimas décadas e, com isso, mais pessoas precisam ser alimentadas por outros”, destaca.
“Sabemos que a agricultura familiar é responsável pela maior parte da nossa produção de alimentos, mas não é ela a maior beneficiada pelas políticas públicas. Pelo contrário, o que vem sendo estimulado com dinheiro público é a agricultura destrutiva, com alto uso de insumos externos, de combustíveis e energias não renováveis, de agrotóxicos e sementes transgênicas. É um paradoxo termos mais fome nesse país, num momento em que estamos aumentando as exportações de proteína (especialmente na forma de soja e carne). E a fome é ainda maior no campo, onde os agricultores poderiam estar produzindo alimentos para si e para sua região”, diz.
Conforme o professor, é possível produzir uma grande diversidade de plantas e animais no Brasil. “Temos os mais diferentes solos e condições climáticas e uma enorme biodiversidade. Não falta água nem gente para produzir. Mas estamos destruindo nossos recursos naturais, a área desmatada vem aumentando a cada ano e isso também influencia as mudanças climáticas, com potencial de influenciar secas e enchentes em proporções nunca antes vistas. Também poderíamos ter estoques de alimentos para alimentar toda a nossa população e muitos outros países em situações de crise. Mas essa precisa ser uma decisão política, de soberania nacional”, ressalta.
“As catástrofes ambientais já não estão sendo apenas previstas, elas já são uma realidade. E após as enchentes teremos mais secas. Também o estímulo ao armazenamento de água, com cisternas e uma melhor conservação de água nos solos precisam ser priorizados com políticas públicas. Água também é alimento e fundamental para a preparação de comida. Será necessário voltar a aprender a cozinhar, a investir em cozinhas comunitárias, em restaurantes públicos e populares. E, antes de mais nada, garantir o acesso à terra, à água, a sementes e a conhecimento para produzir alimentos em circunstâncias de aumento e diminuição de temperaturas que ainda não conhecemos”, enfatiza.
Pós-sustentabilidade
O professor Andrioli afirma que o mundo já está em um contexto de pós-sustentabilidade, que se apresenta quando já é tarde demais para reverter catástrofes. “Aí só nos resta amenizar as consequências, sem a possibilidade de reverter as suas causas. As causas são conhecidas e as medidas necessárias foram acordadas pela maioria dos países, mas não foram cumpridas para atingir a sustentabilidade”, explica.
“De forma bastante simples, a ideia de sustentabilidade pressupõe que as gerações depois de nós possam ter as mesmas ou melhores condições de qualidade de vida que temos. Com o aquecimento global e as mudanças climáticas, sabemos que isso dificilmente será possível. O mais provável é que as metas previstas já estão sendo ultrapassadas, os acordos mais uma vez não serão cumpridos e, para piorar a situação, as consequências negativas estão sendo maiores e mais rápidas que as previstas”, afirma o professor.
“Além disso, essas tragédias estão sendo combinadas: em tempos de pandemia se aprofundam as mudanças climáticas, em um cenário de mais guerras, que geram maior destruição ambiental e de recursos que poderiam ser utilizados para minimizar as tragédias. No cenário político, onde poderiam haver mudanças, esse contexto parece contribuir para uma maior despolitização, mais governos autoritários e uma menor consciência ambiental. Felizmente, uma nova geração surge para questionar nosso modelo de produção e consumo, nossa concepção de crescimento ilimitado, de industrialização desenfreada e de urbanização como modelo de civilização. Um movimento ambientalista global daqueles que veem o seu futuro em risco passa a ter cada vez mais influência na política”, comenta. Ele cita como exemplo o movimento Fridays for Future, que cresce na Europa, mobilizado contra as mudanças climáticas.
“Certamente, a universidade será um dos espaços a serem ocupados por essa nova geração de órfãos do progresso de uma ciência instrumentalizada, destrutiva e sem perspectivas de um futuro viável. É nesse ambiente de pós-sustentabilidade que a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico terá que ser reorientar, se quisermos que a humanidade ainda tenha uma chance. E o tempo continua passando, enquanto a natureza, ao poucos, vai vencendo a lógica do capital”, finaliza Andrioli.
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