Publicado em: 28 de março de 2024 15h03min / Atualizado em: 02 de abril de 2024 16h04min
Há 60 anos, no dia 31 de março, iniciava um período sombrio da história do Brasil, que se estenderia até o ano de 1985. Nesta data, teve início um golpe civil-militar que destituiu o então presidente, João Goulart, e deu início a ditadura militar no país. Para que esta triste fase de nossa história não se repita, o 31 de março é anualmente lembrado. Em tempos de fake news, esta lembrança se torna ainda mais importante, pois, infelizmente, ainda são comuns as falsas informações a respeito desta época.
Para nos ajudar a esclarecer o que de fato aconteceu durante a ditadura militar, convidamos o professor Claiton Marcio da Silva, que é doutor em História e professor dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em História da UFFS – Campus Chapecó. Ele é o autor da obra “Dos braços do povo à espada dos militares: os anos de chumbo na Fronteira Sul do Brasil”, publicada pela editora Padion em 2014.
Medo do comunismo
As fake news, termo muito utilizado nos últimos tempos, são apenas um novo nome para as falsas informações que circulam desde sempre na sociedade. Nos anos 60 não foi diferente. Naquela época foram espalhados rumores de que João Goulart traria para o Brasil um sistema próximo ao comunismo, o que justificaria o golpe civil-militar que ocorreu em 31 de março de 1964.
Mas, afinal, por que há tanto medo do comunismo? Segundo o professor Claiton, “inicialmente, a Igreja Católica colocava o comunismo como inimigo da propriedade privada, da religião e da família. Enquanto, na verdade, se tem no pensamento comunista ou socialista, vamos dizer assim, uma ideia de que é a propriedade dos meios de produção que deve ser terminada. Porque é o meio de produção que garantiria a diferença entre o empresário capitalista, a burguesia, e, por outro lado, o proletariado que seria explorado”.
“Outra questão explorada pela ala conservadora é que os comunistas seriam inimigos da igreja, da religião, por que seriam ateus. Questão essa que viria do século 19 ainda, possivelmente pela crítica que Marx faz da religião enquanto ópio do povo. Não a religião enquanto fé, mas a religião como instrumento de organização da vida social, que seria mais um instrumento de dominação, do que necessariamente de desenvolvimento de uma fé”, pontua.
“Por fim, a questão de que os comunistas são contra a família. Na verdade, os padres pregavam que seria uma ideia de libertinagem, de que as pessoas não viveriam em família, quando na verdade a crítica dos comunistas é justamente de que a família, como conhecemos em tese, já que existem inúmeras configurações, é uma forma de manutenção dessa ordem moderna do capitalismo. Outras configurações de famílias seriam possíveis, mas a igreja, a serviço ou no diálogo com o capitalismo, fortalece essa família patriarcal. Na verdade, os comunistas seriam críticos a esta configuração de família, com toda as suas contradições”, completa Claiton.
Apenas terroristas foram torturados
Há quem diga que somente terroristas foram torturados no período da ditadura militar o que, conforme Claiton, não é verdade. Segundo ele, logo após o golpe iniciou uma série de prisões “de todo e qualquer cidadão brasileiro que fosse ligado ao Partido Trabalhista Brasileiro, que não tinha nada de comunista. Havia algumas pessoas do Partido Comunista infiltradas, mas não chegava a um percentual relevante”.
“Em Chapecó, nós tivemos mais de 20 pessoas presas. Somente uma delas foi liberada no mesmo dia, as demais permaneceram na cadeia, sofrendo tortura psicológica e racista, além de privação de questões básicas. Chapecó é um exemplo de que qualquer um que fosse, talvez nem mesmo contrário ao golpe e à instalação da ditadura, mas só por ser do PTB, ou ter alguma relação que poderia ser entendida como crítica, poderia ser preso”, comenta Claiton.
Conforme o professor, em torno de 50 pessoas foram presas na região Oeste de Santa Catarina. “E nenhuma delas, presas nesse momento, foi militante do Partido Comunista ou realmente comunista, ou com qualquer ligação com o que se chamaria mais tarde de terrorismo. Então essa ideia do terrorismo se vincula com um movimento já do golpe dentro do golpe, que é a declaração do AI-5, em 1968”.
Não havia corrupção
Aqueles que exaltam o período da ditadura militar costumam alegar que enquanto os militares estiveram no poder não havia corrupção, será mesmo verdade? O professor Claiton afirma que há vários estudos sobre o tema e conta que “a economia brasileira estava em frangalhos no final da ditadura, devido ao movimento de modernização conservadora, sem que tenham sido feitas as reformas necessárias no país”. Ele afirma que houve enriquecimento ilícito de militares e de empresários ligados a eles.
Uma outra forma de corrupção que era pouco vista, conforme o professor, “era a maneira de garantir benesses para a própria categoria através do Estado. Como, por exemplo, pensões para filhas que não casavam, que é uma coisa que tem até hoje, assim como os altos salários. Isso fez com que principalmente as Forças Armadas - Marinha, Exército e Aeronáutica - formassem uma elite muito forte no Brasil, com salários que são incompatíveis com a realidade brasileira”.
“Sobre a corrupção há também a relação com as construtoras, inclusive muitas que foram mais tarde alvos da operação Lava Jato. Elas já tinham uma relação importante com figuras da ditadura. Isso está em um livro chamado Estranhas Catedrais. Outro caso muito famoso é o da Itaipu. A Transamazônica também foi um meio de enriquecimento”, pontua.
“Mas o que é mais representativo nesse momento que a gente tá vivendo, é de que não haveria a milícia e o jogo do bicho sem a ditadura militar, que hoje comandam o Rio de Janeiro, mas não apenas lá. Acho que o Rio de Janeiro é um exemplo. Então todas as relações que você encontra com os grandes chefes das comunidades, com os grandes chefes do jogo do bicho, vem por uma ideia de proteção de agentes da repressão, da ditadura. Uma colaboração muito estreita que vai levar a esse superarmamento que se tem nas comunidades hoje e a posterior dominação através das milícias”, afirma Claiton.
O país era mais seguro
Em relação à segurança, ela era maior por haver militares no poder? De acordo com Claiton, “essa ideia é relativa, porque uma cidade pequena naquele momento e uma cidade pequena hoje tem níveis de segurança muito parecidos. Mas a diferença naquele momento é que justamente a explosão da violência no Brasil se dá pela ditadura militar. Porque ela começa a fazer grandes projetos de migração em massa e vai formar comunidades que vão ser dominadas mais tarde por essa relação entre agentes da repressão e jogo do bicho no Rio de Janeiro. Mas também com outras formas, como tráfico de maconha e cocaína na década de 70, tráfico de armas e grilagem de terras. É na ditadura militar que se tem a explosão da violência no Brasil, principalmente nas grandes cidades. O que os governantes posteriores, após 1985, fizeram foi mitigar essa grande explosão sem planejamento urbano”.
Maior desenvolvimento econômico
E sobre a economia, ela estava em melhor forma durante a ditadura militar? Segundo Claiton, houve um momento chamado de Milagre Econômico, “em que houve um certo crescimento econômico dadas as condições internacionais naquele momento, com a crise do petróleo. Mas o pós Milagre Econômico é fatal para toda a tentativa de construção de uma agenda de modernização para o Brasil. Porque houve o endividamento, somado com a corrupção e o mau investimento e as obras faraônicas. Houve toda uma rede estrutural que foi superfaturada”.
“Criou-se um ambiente, no início dos anos 80, em que o Brasil era um dos países mais endividados do mundo, com uma das maiores inflações do mundo, era a maior da América Latina. Portanto, um país sem possibilidade de investimento, que cria toda uma situação nos anos 90, que leva os governos a aderir a uma ideia de corte de gastos”, completa o professor.
Áreas da saúde e educação eram melhores
Sobre as alegações de que as áreas da saúde e educação apresentavam melhores condições nos anos da ditadura militar, Claiton diz que é preciso considerar que eram outros tempos. Naquela época “havia doenças que eram endêmicas ou epidêmicas, circulando pela sociedade, que hoje não existem mais por conta das políticas de saúde. Tinha a possibilidade de construção de planos nacionais de saúde, mas, por outro lado, não havia o engajamento. Então eram planos autoritários e que não alcançavam a capilaridade da sociedade, exceto em alguns programas, como a vacinação, que acabou tendo uma capilaridade nacional”, comenta.
Claiton lembra, ainda, do INAMPS (Instituto Nacional da Previdência Social) criado no período da ditadura militar e que era motivo de piada no país devido a sua fila de espera para concessão de benefícios e realização de procedimentos. Mais tarde o INAMPS foi alvo de investigação da Polícia Federal, que constatou a existência de um esquema fraudulento. “Então havia programas que não funcionavam, burocratizados, e que serviam para alocar caciques políticos”, pontua.
A respeito da área da educação, Claiton lembra que “era muito limitada em função de que havia uma luta contra o método Paulo Freire. Os militares adotaram um método que foi ridicularizado mais tarde, porque ele se limitava à alfabetização funcional (Mobral). Na mesma esteira houve uma série de reformas no Ensino Médio, em que se acabou com História e Sociologia e se fundou a noção de Estudos Sociais e de Educação Moral e Cívica. Para criar um cidadão sem crítica, um cidadão que não percebesse as mudanças e os sistemas de dominação que estavam em vigência. O Mobral, como este sistema alternativo ao método Paulo Freire, também se tornou uma piada nacional, porque, de certa forma, ele servia para formar analfabetos funcionais, sem uma possibilidade de reflexão crítica sobre as mudanças daquele período”.
Realidade em Chapecó
Segundo o professor Claiton, “há uma memória de que não houve ditadura em Chapecó. Houve sim. Houve tenentes andando de jipe com metralhadoras nas mãos, fazendo prisões. Tinha uma rede de informações que levava até o SNI, o Sistema Nacional de Informações. Teve em duas oportunidades um tenente de Palmas que veio até Chapecó para efetuar a prisão de um prefeito. A vigilância sobre o Dom José Gomes, muito forte. Mas as pessoas, de certa forma, têm uma ideia de que a ditadura é só pessoas na rua protestando, com a repressão policial, e esquecem que também a formação de instituições como IBDF, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, impedia que muitas pessoas aqui da região trabalhassem, como, por exemplo, o cientista Fritz Plaumann, para fazer coleta de borboletas e de insetos para a sua coleção”.
“A ditadura afetou de diversas formas, mas as pessoas não percebem porque não têm condições de fazer essa ligação, e também não percebem que o endurecimento da violência policial se dá na região, desde a questão de expulsar sem-terras, indígenas, ou mesmo da violência policial urbana contra pessoas que simplesmente estão andando na rua tarde da noite, que é um resquício da ditadura militar. São essas as questões que fazem com que a gente deva pensar no 31 de março como uma maneira de lembrar criticamente e buscar alternativas para um futuro menos autoritário”, finaliza Claiton.
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