Publicado em: 26 de abril de 2024 09h04min / Atualizado em: 26 de abril de 2024 09h04min
Há 24 anos, no dia 28 de abril, representantes de 180 países, entre eles o Brasil, estiveram reunidos no Fórum Mundial de Educação, em Dakar, no Senegal, para debater e definir metas globais para a educação. A data, então, passou a ser celebrada como o Dia da Educação. Uma data tão significativa merece ser lembrada e também é uma boa oportunidade para refletir a respeito do tema. Que tal, então, falarmos um pouco a respeito daquele que foi instituído, em 2012, como patrono da educação brasileira?
Convidamos a professora Marilane Maria Wolff Paim, que possui graduação em Pedagogia e mestrado e doutorado em Educação e é professora no Mestrado Profissional em Educação na UFFS - Campus Erechim, para comentar algumas das informações que circulam por aí a respeito de Paulo Freire. Ela esclarece o que é ou não verdade a respeito da pessoa e do trabalho do patrono da educação brasileira.
É verdade que Paulo Freire não tem diploma e nunca lecionou?
Profa. Marilane: A formação inicial de Freire foi em Direito, mas ele nunca atuou na advocacia. Durante o curso de Direito também estudou Filosofia da Linguagem, o que o fez professor de Língua Portuguesa, no Colégio Oswaldo Cruz. Em 1959, passou no processo seletivo para a cátedra de História e Filosofia da Educação da Escola de Belas Artes da Universidade de Recife, com a tese Educação e Atualidade Brasileira. Foi professor na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), além de ter lecionado em Harvard, nos Estados Unidos, em 1969.
É verdade que Paulo Freire não teve êxito na área da educação e na experiência de Angicos (RN)?
Profa. Marilane: Angicos foi uma experiência reconhecida mundialmente como “As quarenta horas de Angicos”, onde o processo de alfabetização desenvolvido por Paulo Freire partia da experiência de vida e das palavras do dia a dia dos envolvidos, do seu contexto, da sua práxis, das suas palavras geradoras, do que realmente lhes interessava. Com isso conseguiu, com sucesso, alfabetizar 300 trabalhadores em 40 dias, na pequena cidade de Angicos, no interior do Rio Grande do Norte, em 1963. Nessa proposta a alfabetização é um ato de conhecimento, de criação, e não de memorização mecânica.
O sucesso da alfabetização de Angicos despontou nacionalmente e internacionalmente e levou o estado do Rio Grande do Norte a receber pesquisadores, educadores, intelectuais, militares, especialistas, políticos, curiosos e até mesmo observadores internacionais e jornalistas de países da América Latina, da Europa, além da União Soviética, do Japão, do Egito e de Israel que desejavam compreender o método.
É verdade que Paulo Freire tinha um método de doutrinação esquerdista disfarçado de alfabetização? Alguns afirmam que ele era um panfletário político e não um educador e que usava a educação para conscientizar jovens e adultos para uma revolução comunista.
Profa. Marilane: Criticar e desqualificar Freire são ações realizadas por pessoas que não entendem o seu pensamento. A complexidade e profundidade de seus ensinamentos não podem ser compreendidos descolados de um projeto social e político, somente falando sobre suas ideias e utilizando seus conceitos/palavras descontextualizadas.
Todo trabalho desenvolvido por Freire, assim como sua produção, tem bases teóricas que a definiram. Uma delas foi o idealismo, que estava presente no pensamento católico moderno, especialmente nas comunidades eclesiais de base. A pedagogia Freiriana é também política, é claro, mas não política-partidária. É política em sua concepção fundamental, do debate, da construção e do enfrentamento de ideias dos seres envolvidos no processo educacional. Para Freire a educação é um ato político pois é ela que conduz as pessoas a uma sociedade mais justa, democrática e igualitária.
E, é claro, Freire fez opções políticas e filosóficas, como por exemplo, buscar a teoria de Marx e Engels, com ênfase ao Materialismo Histórico Dialético, para promover o pensamento sobre a relação entre a educação e a sociedade, pois Freire fazia reflexões sobre a educação como uma proposta de libertação e consciência social, mas isso não quer dizer que ele usava de sua filosofia para cooptar pessoas para uma revolução comunista.
Uso aqui uma frase de Moacir Gadotti “nenhum pedagogo ou educador tem a intenção de fazer escravos ou […] domesticar homens para a obediência e a submissão” para reafirmar que o professor vê, ou deveria, ver na educação um processo que possui como norte o desenvolvimento do ser humano, “impregnar de sentido o que fazemos a cada instante”. Mas compreender Freire é comprometer-se com a construção de um outro mundo. Por isso muitas inverdades são afirmadas.
Os métodos de Paulo Freire são predominantes nas escolas do país e nas práticas docentes?
Profa. Marilane: Primeiro cabe esclarecer que Paulo Freire não deixou um “método de alfabetização” descrito, com uma sequência de etapas com foco num objetivo. O trabalho de Paulo Freire é muito mais que uma fórmula pronta, ele se constitui em cada espaço, portanto sempre aberto e é, principalmente, uma ampla e profunda compreensão da educação, uma teoria do conhecimento.
Sobre sua filosofia ser utilizada de maneira predominante nas escolas do país, é preciso também esclarecer que se essa pergunta se refere à educação que parte da realidade e dos interesses dos alunos e com base no diálogo entre educador e educando, promovendo uma relação entre currículo e comunidade escolar, muito provavelmente não. Há muito que se avançar nessa práxis.
Também precisamos considerar o modo como a educação é organizada no país e que as ideias de Paulo Freire não são uma política pública no Brasil aplicada ao sistema educacional brasileiro. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), por exemplo, está inscrita muito mais em uma perspectiva pós-moderna, focada nas competências e habilidades do que alinhada à pedagogia de Freire, que propõe, fundamentalmente, a formação de um sujeito crítico e pensante.
Estados e municípios e universidades, enquanto entes gestores, organizam seus projetos pedagógicos com base em diversos teóricos da educação e diferentes políticas e concepções de trabalho. Freire costuma ser mais citado em propostas curriculares de educação de jovens e adultos.
No entanto, em países classificados pela Unesco como tendo os melhores sistemas educacionais (Coreia do Sul, Finlândia, Estados Unidos etc.), aplica-se a pedagogia de Freire. Ele é o terceiro teórico mais citado em trabalhos acadêmicos no mundo. Ele dá nome a institutos acadêmicos em países como Finlândia, Inglaterra, Estados Unidos, África do Sul e Espanha. Sua obra Pedagogia do oprimido é o livro mais lido no mundo na área das Ciências Sociais.
É verdade que a situação da Educação Brasileira é a prova de que Paulo Freire é uma fraude?
Profa. Marilane: Como afirmar isso? Qual a relação de causalidade? A situação da educação brasileira é decorrente de vários fatores, como econômicos, políticos, sociais, culturais, entre outros, e não pela proposta de Freire que deixou como legado uma teoria educacional que nos ensina a perceber a educação num sentido amplo, considerando a totalidade e a complexidade das dimensões que a constituem, ou seja, compreendendo a educação como um ato político, ao mesmo tempo em que também se realiza como uma determinada concepção teórica, e que mobiliza a inteireza dos sujeitos envolvidos. Portanto, Freire contribuiu e contribui com o seu posicionamento para que a educação brasileira seja mais democrática, crítica e participativa, onde educadores e educandos são sujeitos de sua própria história, onde tem condições de transformar e ser transformado.
O conhecido “kit gay” foi baseado na teoria de Paulo Freire?
Profa. Marilane: O “kit gay” é uma fake news. O que foi chamado de kit gay na verdade se chamava “Projeto Escola sem Homofobia” e estava dentro do programa Brasil sem Homofobia, do governo federal, em 2004. Não há relação entre as coisas. Essa ideia entrou no imaginário popular assim como várias outras ideias disseminadas erroneamente e que visam travar uma ofensiva contra uma suposta ideologização da educação e contra uma educação pública, popular e emancipadora.
O que ou que aspecto da obra de Paulo Freire assusta tanto alguns setores da sociedade, sendo alvo de tanta desinformação?
Profa. Marilane: Muitas coisas poderiam ser explicitadas a partir das ideias de Freire que desacomoda os setores da sociedade, mas vou destacar o aspecto de luta e do sonho. Sempre lutou pela transformação da sociedade e questionou o poder dominante. Ele foi um crítico fervoroso da sociedade neoliberal, era contra a ordem capitalista vigente que inventou esta aberração: “ a miséria na fartura”. E por isso incentivou o debate e a luta política entre os trabalhadores para a construção de uma sociedade mais justa e mais humana. Nunca deixou de sonhar por uma mudança radical de uma sociedade de dominação para uma sociedade igualitária, tanto do ponto de vista econômico e democrático como do ponto de vista político, racial, sexual e educacional.
Quem foi Paulo Freire?
Profa. Marilane: Falar sobre Paulo Freire constitui uma tarefa apaixonante, mas complexa. Complexa pela consistência teórica de sua obra; apaixonante pela possibilidade de falar sobre um intelectual excepcional sob vários aspectos. Paulo Reglus Neves Freire nasceu em Recife, no dia 19 de setembro de 1921 e faleceu em São Paulo, em 2 maio de 1997. Foi alfabetizado pela mãe, que o ensinou a ler e a escrever, no chão do quintal da sua casa, usando galhos pequenos de árvore.Foi um educador, escritor e filósofo Pernambucano. Freire foi um homem além de sua época, foi considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial. Todo seu trabalho teórico envolve uma crítica contundente à educação bancária, onde o professor detém o conhecimento e o aluno é um mero receptor. Ele propõe uma educação dialógica onde educadores e educandos são sujeitos do processo e em diálogo problematizam a realidade priorizando os valores que constroem a justiça social e liberta os homens e mulheres dos preconceitos e da discriminação. Freire considera a educação um ato político, coletivo e solidário. Freire foi declarado Patrono da Educação Brasileira, em 2012, por ser considerado como o mais importante e destacado teórico da história da educação brasileira.
Qual a principal contribuição de Paulo Freire para a educação brasileira?
Profa. Marilane: Muitas são as contribuições do legado de Freire para a educação brasileira, gostaria de destacar cinco:
1 - O respeito ao saber do educando. Paulo Freire considerava e respeitava o saber dos educandos e a partir deles em um processo dialógico trabalhava para construir um conhecimento elaborado e crítico. O cotidiano e a experiência dos sujeitos são pontos de partida.
2 - A formação do educador. Paulo Freire no conjunto de sua obra vai trabalhando/problematizando/refletindo sobre a formação de educadores, em alguns momentos dando ênfase aos fundamentos políticos, filosóficos, em outros os antropológicos, sociológicos e pedagógicos de sua proposta, onde as várias categorias do seu pensamento se entrelaçam: diálogo, relação teoria-prática, conscientização, construção do conhecimento, democratização e outras, em um movimento que mostra, com clareza, a politicidade da educação.
3 - A educação enquanto ato político. Paulo Freire defende uma educação enquanto ato político, desconstrói o discurso da neutralidade, difundindo a primazia da ética e da equalização social como pressupostos indispensáveis para a instauração de uma educação e de uma sociedade mais justa, democráticas e igualitárias.
4 - Alfabetização de jovens e adultos. Paulo Freire preocupado com o grande número de trabalhadores que não sabiam ler e escrever construiu uma proposta pedagógica com base no respeito pelo educando e na conquista da autonomia, tendo o dialogicidade como fio condutor do processo de ensino-aprendizagem. A alfabetização entendida como elemento de conscientização, mudança social e emancipação dos sujeitos.
5 - A crítica contundente a educação bancária. Paulo Freire critica a prática da educação bancária, tendo em vista que nessa abordagem o aluno é um sujeito passivo ao seu processo de aprendizagem. O conhecimento é transmitido e não é contextualizado, a linguagem trabalhada é artificial, o professor é o detentor do conhecimento. A memorização sem compreensão é incentivada pelo professor. A avaliação é entendida como um produto. A educação bancária para Freire é autoritária e opressora e não promove o pensamento crítico e a reflexão dos educandos e como tal deve ser rejeitada dando lugar a uma educação transformadora e libertadora.
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