Publicado em: 01 de dezembro de 2010 09h12min / Atualizado em: 20 de março de 2017 13h03min
O reitor da UFFS, Dilvo Ristoff, visitou o Parque Temático do Contestado, no município de Irani (SC), no último dia 25. Acompanhado de professores da universidade, ele foi conhecer a proposta de transferência da propriedade para a universidade, bem como as potencialidades culturais, artísticas, turísticas, educativas e as oportunidades para o ensino, a pesquisa e a extensão da comunidade acadêmica da UFFS que o local oferece.
Com a visita, os professores e o reitor decidiram constituir uma comissão para formular um grande projeto que transforme as potencialidades do local em metas e ações. Com o projeto, segundo Ristoff, a UFFS vai definir o que pode e o que quer fazer no local, além de levantar os recursos humanos, financeiros e técnicos necessários para assegurar programas continuados.
“Só depois da elaboração deste projeto e da verificação de sua viabilidade é que tomaremos a decisão sobre a transferência da propriedade à UFFS. Em princípio, o projeto tem boa receptividade dentro da UFFS, pois pode ser importante campo de pesquisa, ensino e extensão, com importante impacto na vida das pessoas da região e do estado de SC”, ressaltou o reitor.
O professor de História da Fronteira Sul da UFFS, em Chapecó, Delmir Valentini, ficará à frente da comissão. Leia o artigo do professor a respeito do parque e, se quiser saber ainda mais sobre o Contestado, veja as referências bibliográficas indicadas por ele:
A Guerra do Contestado
A Região do Contestado abrange uma vasta área de terras do Oeste catarinense e Sudoeste do Paraná que foi alvo de disputas jurídicas entre os dois estados e até entre o Brasil e a Argentina. Antes da construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande do Sul, que cortou verticalmente a Região do Contestado, estas terras eram cobertas pela Floresta Ombrófila Mistai. No início do Século XX, vastas áreas de terras consideradas devolutas foram alvo dos processos de ocupação, povoamento, extração madeireira e colonização. Nesse contexto de bruscas mudanças para a população local, ocorreu o movimento bélico que foi denominado de Guerra do Contestado.
As disputas pelas terras do Sul do Brasil são antigas e remontam o tempo da colônia, quando Espanha e Portugal protagonizaram episódios com diversos acordos e tratados, não raras vezes com hostilidades e violência como na Guerra Guaranítica, por ocasião do Tratado de Madrid. Nos últimos anos do Império e início da República no Brasil, houve um processo de disputa territorial com a Argentina, resolvida com o arbitramento de Grover Cleveland, não sem deixar o amargo gosto da perda do outro lado e uma rivalidade crescente nas décadas seguintes.
Internamente, foi entre Santa Catarina (Província criada em 1821) e Paraná (1853) que uma acirrada disputa territorial perpassou o império brasileiro e agitou as três primeiras décadas da República Velha. Quando principiaram as revoltas na Região Contestada entre os dois estados, forças policiais dos dois estados litigantes vieram para a região dos conflitos e, também, o exército republicano brasileiro, participou na denominada Campanha no Contestado (como se descreveu nos primeiros escritos sobre o episódio). Mais tarde se convencionou à denominação de Guerra do Contestado.
A Batalha do Irani
Em outubro de 1912, um grupo de sertanejos, liderados por um curandeiro conhecido como José Maria, palmilhou do antigo município de Curitibanos para o Irani, chegando numa vasta área povoada esparsamente por posseiros e de largas dimensões territoriais envolvendo adjacências com o também antigo Município de Palmas. Ao cruzarem o Rio do Peixe (limite provisório entre SC e PR), no momento em que a disputa entre os dois estados já havia chegado ao Supremo Tribunal Federal, despertou na imprensa paranaense artigos inflamados, incitando a necessidade de defesa do “território invadido”.
O Regimento de Segurança do Paraná, comandado por João Gualberto, foi até o local. O comandante trazia cordas, queria desfilar nas ruas de Curitiba com os sertanejos presos (MACHADO, 2004). Intimado pelo comandante a se entregar, José Maria teria solicitado tempo para se retirar. Atacado, revidou e no auge do combate, tombaram os dois líderes. José Maria teria tombado por uma bala e João Gualberto foi “cercado e morto por uma pequena multidão de caboclos enfurecidos” (VINHAS DE QUEIROZ, 1981).
A batalha do Irani ganhou manchetes nacionais, mostrando os dois líderes mortos e o luto no sertão. Criou-se um clima de consternação no Paraná e no interior catarinense. Os sertanejos que não tombaram na refrega, internaram-se nas matas, voltaram para seus ranchos, carregando o desgosto pela morte do líder e as armas abandonadas pelas forças. Eram os errantes do novo século, como bem os definiu o sociólogo Duglas Teixeira Monteiro (1974), gente que andava sem destino e que alimentava a crença na ressurreição de José Maria.
Diferentemente de outros conflitos sociais, a morte do líder não representou o fim do movimento, pelo contrário, em pouco tempo, começaram os boatos da volta de José Maria no exército encantado de São Sebastião. A crença da ressurreição começou no próprio local de combate. Pouco mais de um ano após este episódio, reuniram-se para a construção das cidades santas ou também denominados de redutos e os quatro anos seguintes foram sangrentos.
O Parque Temático do Irani
Vicente Telles nasceu no Irani e ainda jovem foi para o Rio de Janeiro. Fez carreira militar e quando voltou para a sua terra natal, quase meio século depois da Batalha do Irani, para surpresa e espanto, tomou conhecimento de que seus avós, tanto paterno quanto materno, haviam lutado em lados opostos, um como militar e outro como jagunço (denominação comum aos que haviam ousado desafiar a ordem vigente).
Estarrecido com as narrativas da avó, que foi testemunha ocular e acudiu ao local após a batalha do Irani, que viu os mortos espalhados e presenciou as lágrimas e o desespero dos familiares das vítimas, Vicente empreendeu uma luta para defender a memória dos que tombaram como vítimas do abandono num contexto de total carência de assistência aos que ele chama de caboclos que legaram a posse destas terras ao Brasil.
Folclorista, músico, compositor e pesquisador da História do Contestado, Vicente Telles compõe arranjos musicais e letras como “O choro das velhas”, uma alusão às histórias que a avó contava, impressionando pela “paixão” nutrida pela história que também é protagonista. Chama a atenção de estudantes para convicção em valores como a honestidade e a política correta pautada na ética e nos bons costumes.
Vicente Telles recebe, todos os anos, milhares de estudantes oriundos de Escolas de toda Região Sul. Em 2006 recebeu um grupo de alunos da USP, acompanhados pela historiadora Zilda Yokoi, bem como recebe pesquisadores da temática que visitam o Irani e conhecem seu abnegado trabalho e até a sua residência virou um ambiente impregnado da História do Contestado.
Preocupado com o “futuro das memórias do contestado”, no último dia 25 de novembro, Vicente empreendeu mais uma luta em sua trajetória de vida. Ele foi o idealizador do Parque Temático do Contestado, auxiliado pelo arquiteto Ires Lopes da Silva e um grupo que conta com autoridades, estudantes, pesquisadores e a própria comunidade do Irani. Numa vasta área de terras (aproximadamente 32 hectares) onde um grande projeto foi iniciado, mas que se encontra inacabado, Vicente convidou a UFFS, através do Reitor Dr. Dilvo Ilvo Ristoff para visitar o Irani, conhecer o Parque Temático do Contestado e pensar na possibilidade de assumir o desafio.
A UFFS iniciou suas atividades neste ano de 2010 e surgiu como fruto de lutas de movimentos sociais que ajudaram a garantir a presença do Estado, de forma inédita nestas terras, com educação superior gratuita e de qualidade. Há quase cem anos antes o movimento social que resultou no genocídio de aproximadamente 8.000 brasileiros, moradores deste mesmo chão contestado (em sua maioria sertanejos pobres e analfabetos) já encontrava observadores como Mesquita que apontou a “infestação de elementos perniciosos” porque os Governos do Paraná e Santa Catarina “descuram da instrução, deixando a ignorância campear livremente, chegando o fanatismo a constituir grupos”(SOARES, 1931 p. 72).
Ou ainda a frase de João Teixeira Mattos da Costa, morto no combate:
"A revolta do Contestado é apenas uma insurreição de sertanejos espoliados nas suas terras, nos seus direitos e na sua segurança. A questão do Contestado se desfaz com um pouco de instrução e o suficiente de justiça, como um duplo produto que ela é da violência que revolta e da ignorância que não sabe outro meio de defender o seu direito" (PEIXOTO, 1916, p.94).
Hoje, em alguns municípios da Região do Contestado, encontramos os mais baixos índices de desenvolvimento humano (Segundo o IDH do ano 2000, o Município de Timbó Grande, exatamente onde esteve o último reduto da Guerra do Contestado, encontrava-se em último lugar entre os municípios catarinenses). A assistência aos moradores da região só chegou em pleno século XX e, mesmo assim, condição que, em partes, ainda não se assegura que é totalmente passado. Como se vê, não apenas na INSTRUÇÃO, a Universidade Federal da Fronteira Sul, recém instalada na Mesorregião da Grande Fronteira do Mercosul, tem gigantes desafios a enfrentar.
(Imagens do livro do professor Delmir, cedidas por ele)
Para conhecer mais sobre Guerra do Contestado
AURAS, Marli. A Guerra Sertaneja do Contestado: organização da irmandade cabocla. Florianópolis: Cortez, 1984.
BERNARDET, Jean Claude. Guerra Camponesa no Contestado. São Paulo: Editora Global, 1979.
BORELLI, Romário José. O Contestado. Curitiba: Orion, 2006.
BORELLI, R. J. e VALENTINI, D. J. Doze Pares de Cenas da História do Contestado: Arte e Cultura na Representação da Fúria Cabocla. Curitiba: Orion, 2009.
D’ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira. A Campanha do Contestado. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1917, Volume I.
D’ASSUMPÇÃO, Herculano Teixeira. A Campanha do Contestado. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1918, Volume II.
DIACON, Todd A. Millenarian Vision, Capitalist Reality – Brazil’s Contestado Rebellion, 1912-1916. Fourth printing, Duke University Press, Durham and London, 2002.
ESPIG, Márcia Janete. A presença da gesta carolíngia no movimento do Contestado. Dissertação de Mestrado em História, UFRGS. Porto Alegre, l998.
FELIPPE, Euclides José. O Último Jagunço. Curitibanos: Universidade do Contestado, 1995.
FELISBINO, Pedro Aleixo e Eliane Trisotto. Frei Rogério. Curitiba: Gráfica e Editora Blumen, 2008.
GAULD, Charles A. Farquhar o útimo titã: um empreendedor americano na América Latina. Tradução Eliana Nogueira do Vale. São Paulo: Editora de Cultura, 2006.
HEINSFELD, Adelar. A Questão de Palmas entre Brasil e Argentina e o Início da Colonização no Baixo Vale do Rio do Peixe-SC. Joaçaba: UNOESC, 1996.
MACHADO, Paulo Pinheiro. Lideranças do Contestado: a formação e a atuação das chefias caboclas (1912-1916). Campinhas SP: Editora da UNICAMP, 2004.
MONTEIRO, Douglas Teixeira. Os Errantes do Novo Século. São Paulo: Duas Cidades, l974.
PEIXOTO, Demerval. Campanha do Contestado - Episódios e Impressões. Rio de Janeiro, 1916.
RADIN, José Carlos. Italianos e ítalo-brasileiros na colonização do oeste catarinense. Joaçaba : UNOESC, 1997.
SOARES, J. O. Pinto. Guerra em Sertões Brasileiros: do fanatismo à solução do secular litígio entre o Paraná e Santa Catarina. Rio de Janeiro: Papelaria Velho, 1931.
TOKARSKI, Fernando. Cronografia do Contestado – Apontamentos históricos da região do Contestado e do Sul do Paraná. Florianópolis: IOESC, 2002.
TOMPOROSKI, Alexandre Assis. O pessoal da Lumber: um estudo acerca dos trabalhadores da Southern Brazil Lumber and Colonization Company e sua atuação no planalto norte de Santa Catarina, 1910-1929. Florianópolis: UFSC, 2006 (Dissertação de Mestrado).
VALENTINI, Delmir José. Da Cidade Santa à Corte Celeste: Memórias de Sertanejos e a Guerra do Contestado. 3ª Edição, Caçador-SC: Universidade do Contestado, 2003.
______________________. Atividades da Brazil Railway Company no Sul do Brasil: a instalação da Lumber e a Guerra na Região do Contestado.
VINHAS DE QUEIROZ, Maurício. Messianismo e conflito social (a guerra sertaneja do contestado: 1912-1916). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1966.
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