Jerônimo Sartori começou a lecionar em abril de 1974. Filho mais velho de pequenos produtores de Maximiliano de Almeida (RS), chegou à docência quando o modelo de ensino ainda era centrado na figura autoritária do professor e também no tecnicismo. Foi com o incômodo de tal sistema e a busca por alternativas que sua carreira tomou outros caminhos. Passados 50 anos desde que deu a primeira aula, ele segue atuante, na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Campus Erechim. Na entrevista abaixo, o docente, que é mestre e doutor em Educação, reflete sobre as diferentes mudanças do sistema educacional brasileiro (que acompanhou de perto), diz que as últimas reformas são as piores que já viu e aborda a importância de uma formação de professores que seja sólida e crítica.
Como a docência surgiu na sua vida, ou como é que você decidiu que essa era a profissão que você queria seguir?
Quando criança. Comecei a observar como a primeira professora que tive procedia. Ela me marcou muito no meu processo de alfabetização. Eu morava em um município pequeno, Maximiliano de Almeida, e ainda não havia ensino médio lá. Eu teria que sair para outra cidade. Sou o filho mais velho de uma família de pequenos produtores, logo, eu também tinha que ajudar em casa. A alternativa foi fazer o curso técnico de Contabilidade, à noite, no município de Marcelino Ramos. Não era o que eu queria, mas era o que eu podia fazer. Depois fiz vestibular para o curso de Ciências, na época Licenciatura Curta, para me tornar professor de Ciências ou, preferencialmente, de Matemática. E foi isso o que aconteceu. Fiz o vestibular no final de dezembro para o curso de Ciências, em regime especial de férias, na Universidade de Passo Fundo. E assim, no início de 1974, eu comecei o curso de licenciatura. Na época houve uma expansão da educação básica e uma grande demanda por professores. Na faculdade eu fiz a etapa de janeiro e fevereiro, período intensivo, e no mês de abril eu já fui contratado pra a sala de aula. Entrei no magistério em 14 de abril de 1974 e estou até hoje.
Como o senhor vê a evolução do sistema educacional durante esse tempo todo? O senhor acompanhou, creio, diferentes etapas e reformas, não?
Eu fiz a educação básica ainda com a primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que nós tivemos no Brasil, a Lei N.º 4.024 de 1961, quando tínhamos a educação básica seccionada em três: ensino primário, o ginasial e o secundário. Este último seria o ensino médio, que tinha diferentes denominações. Depois passou a ser técnico, mas tinha o curso de magistério, o curso científico e o curso colegial. Eu fiz a minha formação no período do tecnicismo, quando se achava que este resolveria todos os problemas da educação. Ledo engano, pois não se conseguiu. Penso que avançamos a partir daí, dentro da perspectiva da teoria crítica – claro, talvez não o necessário. E agora, de seis anos pra cá, estamos passando por um novo retrocesso, com a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Estamos voltando a focar no tecnicismo, que acha que técnica e apostilamento vão resolver os problemas. Não se olha para a realidade da educação básica enquanto oferta, enquanto estrutura. Os professores enfrentam essas problemáticas hoje, sendo muito pressionados por toda essa questão dos registros, das plataformas, etc. e tal, que na minha concepção, isso, apenas, não vai resolver os problemas que temos na educação básica.
O senhor colocaria os desafios com essas novas normas como os principais da sua carreira?
Eu comecei a ser professor de matemática com base no modelo dos meus professores. E o modelo dos meus professores era o modelo do tecnicismo, da transmissão, memorização e reprodução. Comecei a perceber que tinha alguns problemas, mas eu não sabia como lidar com eles. Por exemplo: alunos que chegavam na quinta série com muita dificuldade de estudar frações, um conteúdo que eles tiveram na segunda, terceira e quarta série. Aí, numa formação que fiz, intitulada de educação matemática, comecei a discutir essas dificuldades que os alunos estavam apresentando, esse atraso na aprendizagem. Comecei a me debruçar sobre essas questões para trabalhar de uma forma diferente. Trabalhar não só na perspectiva da aula expositiva, mas da interação. Então a primeira barreira foi vencer aquilo que me constituiu até o momento, a partir dos professores que eu tive, que era um modelo mais autoritário. Compreendi que nem todos aprendem da mesma forma, que o ensino não se faz como em uma linha de montagem. Que ele, o aluno, tem múltiplas variáveis que interferem em aprender, em não aprender ou em ter dificuldades para aprender. Acho que foi um avanço pessoal, mas que também foi trabalhado na formação de professores.
Nos cursos de licenciatura a gente tem trabalhado isso. Desde 1991 trabalho no ensino superior formando professores e dialogando sobre essa diferença. Não mais daquela constituição de aluno ideal. O que temos é o aluno real. E o aluno real é multifacetado, vem de diferentes lugares, com diferentes experiências, diferentes habilidades cognitivas, intelectuais. E nós, enquanto professores, temos que agir sobre isso. E o que me parece hoje é que estamos voltando pra trás, a partir de uma resolução para mudar a formação dos professores só para ensinar a transmitir a BNCC. Para trabalhar de uma forma linear, como se todo mundo estivesse no mesmo patamar. Como se eu, enquanto professor, estivesse fabricando tijolos que vão sair todos do mesmo tamanho. E como se todos estivessem no mesmo contexto social, mesmo contexto de estímulo para o estudo.
Como era o jovem no começo da sua formação e o jovem de hoje? Quais são as características que o senhor nota que mais mudaram?
As características são as do nosso tempo. O jovem de hoje é o jovem de hoje. Quando alguém diz “ah, no meu tempo era assim” eu pergunto: “mas qual era o seu tempo? Qual era o conjunto de informações que você tinha? Com quem você dialogava? O que você lia?”. Quer dizer, o tempo é o tempo de hoje. Eu não posso querer voltar para trás. A tendência do professor é de querer aquele aluno quietinho, aquele aluno assujeitado, obediente, apassivado. Então um aluno bom é aquele que fica quieto? Por quê? Hoje temos mudanças significativas nas percepções, nas visões de mundo. Temos que trabalhar isso. Esse conjunto de informações precisa ser trabalhado para transformar em conhecimento na escola. Esse é um desafio que nós temos, porque a criança e o jovem de hoje têm muita informação, são muito estimulados. Aquilo que eu fazia, quando eu comecei a trabalhar em 1974 em uma sala de aula, talvez não dê mais para fazer hoje. E eu sempre digo: nunca tive anjo na sala de aula. Eu tive gente. Temos aquilo que a humanidade está produzindo. E que bom que há um conjunto de informações, e que bom que tem a escola como um espaço que talvez possa potencializar melhor a construção do conhecimento a partir disso.