A Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – Campus Chapecó realiza, na sexta-feira (28), a roda de conversa “Cannabis em Defesa da Vida: Uso Medicinal e Desafios para Pesquisa, Prescrição e Regulamentação”. No evento, que acontece a partir das 13h30, no Auditório do Bloco C, serão discutidos evidências científicas, perfil de pacientes que se beneficiam da terapia canabinoide, panorama regulatório e desafios para o avanço das pesquisas no Brasil.
A programação contará com a participação da neurocientista e professora da UFFS – Campus Chapecó, Zuleide Maria Inácio, da neurocientista, fundadora do Instituto Educação, Descoberta, Medicina Avançada (EDMA) e mestre em Ciências Biomédicas pela UFFS, Brunna Varela da Silva, do deputado Padre Pedro Baldissera, que tem atuado na promoção de debates públicos em Santa Catarina sobre o tema. A roda de conversa será mediada pela professora Maria Eneida de Almeida, pesquisadora em Saúde Coletiva da UFFS e responsável pela coordenação institucional da atividade.
A professora Zuleide, também líder do Grupo de Pesquisa em Neurociência Translacional Clínica e Epidemiológica e coordenadora do Biotério do Campus Chapecó, conduz estudos laboratoriais desde 2022 com modelos animais de depressão e ansiedade, nos quais são mimetizados traumas vivenciados na infância e adolescência. Em fase adulta, esses animais são tratados com óleos de canabidiol e formulações de espectro completo de Cannabis sativa.
A professora explica que os resultados já publicados demonstram reduções significativas de comportamentos tipo depressivo e ansioso, além de efeitos benéficos sobre parâmetros biológicos como inflamação e estresse oxidativo. Atualmente, quatro dissertações de mestrado e uma tese de doutorado aprofundam o tema na UFFS. Parte das investigações é financiada por editais da FAPESC, e a pesquisadora também possui bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq com foco em cannabis medicinal.
Apesar disso, há dificuldades. “Os desafios para as pesquisas com a cannabis medicinal estão relacionados com financiamentos, pois ainda temos pouco financiamento. Mas, um desafio ainda maior é a falta de regulamentação e autorização para cultivo e pesquisas com cannabis medicinal no Brasil”, comenta a professora.
A fundadora do Instituto EDMA, além de discutir sua pesquisa de mestrado, que avaliou os efeitos antidepressivos do óleo de espectro completo em modelos de estresse precoce, apresentará evidências atualizadas sobre o perfil dos pacientes que podem se beneficiar clinicamente da cannabis medicinal.
Brunna esclarece que a literatura científica mostra que a terapia apresenta resultados importantes em condições como epilepsias farmacorresistentes (as quais os medicamentos que normalmente funcionariam para tratá-las não fazem mais efeito ou têm efeito muito menor do que o esperado), dor crônica neuropática e oncológica, espasticidade associada à esclerose múltipla e náuseas induzidas por quimioterapia. Observa-se, ainda, segundo a pesquisadora, a crescente adoção do uso da cannabis medicinal em transtorno do espectro autista, distúrbios do sono, ansiedade, depressão, doenças neurodegenerativas e cuidados paliativos. A especialista destaca, entretanto, que o emprego da cannabis medicinal deve sempre ocorrer mediante avaliação clínica criteriosa, definição de objetivos terapêuticos e acompanhamento sistemático.
Dados levantados no Anuário da Cannabis Medicinal no Brasil 2025, trazidos por Brunna, mostram que aproximadamente 873 mil pessoas utilizam produtos à base de cannabis no país, movimentando um mercado estimado em R$ 971 milhões. Esses pacientes acessam os produtos por três vias formais: importação via Anvisa (cerca de 354 mil usuários); aquisição em farmácias (aproximadamente 293 mil pacientes); ou associações de pacientes com autorização judicial (cerca de 226 mil beneficiados).
Ainda conforme as informações do anuário, desde 2019, 85% dos municípios brasileiros registraram pacientes em tratamento, e mais de 55 mil profissionais de saúde já emitiram prescrições. No recorte estadual, Santa Catarina ocupa a quarta posição nacional em número de prescrições, com 26,7 prescrições para cada 10 mil habitantes entre 2019 e 2024 e aumento de 87% nas solicitações de importação no último ano. Brunna relata, ainda, que em 2025, o estado regulamentou a Política Estadual de Fornecimento Gratuito de Medicamentos à Base de Cannabis pelo SUS, instituída pela Lei nº 19.136/2024, ampliando o acesso a pacientes com indicação clínica e respeitando normas sanitárias da Anvisa.
Histórico da regulamentação
O cenário regulatório também será debatido entre os especialistas. De acordo com a fundadora do Instituto EDMA, embora a RDC nº 327/2019 tenha estabelecido diretrizes para a comercialização de produtos à base de cannabis, o Brasil ainda carece de legislação federal que autorize e discipline o cultivo medicinal. Em 2024, no âmbito do Incidente de Assunção de Competência nº 16, o Superior Tribunal de Justiça determinou que a União e a Anvisa elaborassem uma norma específica para o cultivo para fins medicinais e farmacêuticos.
Em 2025, resgata Brunna, o Tribunal prorrogou o prazo, fixando 31 de março de 2026 como data limite para a conclusão da regulamentação. No Congresso Nacional, duas propostas estão em destaque: o PL 399/2015, que prevê o cultivo controlado por empresas, instituições de pesquisa e associações; e o PL 2.259/2025, que propõe a criação de um programa nacional de apoio às associações voltadas à cannabis medicinal, com possibilidade de convênios para atendimento pelo SUS. Em paralelo, a Advocacia-Geral da União e a Anvisa desenvolvem um plano de ação para regulamentar etapas que vão do cultivo à entrega do produto ao paciente.
Conforme ela, os principais obstáculos estão justamente na falta dessa lei clara. Brunna explica que a Lei de Drogas, de 2006, continua tratando a cannabis principalmente como questão criminal, enquanto as regras sanitárias olham apenas para os produtos já prontos, sem definir de maneira abrangente como a planta pode ser cultivada legalmente no Brasil. “Com isso, cria-se um cenário fragmentado: os produtos podem ser importados, fabricados e vendidos, mas o cultivo da planta segue, em regra, proibido. No caso das associações de pacientes, essa situação é ainda mais sensível. Hoje não existe uma lei federal que autorize de forma expressa o cultivo coletivo para fins medicinais”.
Segundo a pesquisadora, muitas associações funcionam amparadas em decisões judiciais, principalmente habeas corpus individuais ou coletivos, que concedem uma espécie de salvo-conduto para cultivar e produzir o óleo em caráter excepcional. “Na prática, essas entidades prestam um serviço essencial para milhares de pacientes, mas vivem em um ‘limbo jurídico’, sujeitas a interpretações diferentes entre juízes, a risco permanente de questionamentos criminais e à ausência de padrões sanitários definidos em uma norma nacional”, conclui.