O país do Carnaval viveu, no último fim de semana, o melhor de dois mundos. No auge da festa, na noite de domingo, recebeu a notícia da premiação, pela primeira vez na história, de um filme brasileiro no Oscar, o prêmio mais famoso e prestigiado do cinema. Filme este que traz como enredo uma trama real, vivida em um dos momentos mais cruéis da história brasileira. Esta conquista tem tantas camadas que merecem ser exploradas, que convidamos o professor Gerson Egas Severo, do curso de História da UFFS – Campus Erechim, para falar um pouco sobre isso. Confira a seguir a entrevista.
Como professor de História, como você avalia o impacto de “Ainda estou aqui” na atualidade?
Em “Ainda estou aqui”, de 2015, o livro que inspirou o filme de Walter Salles, Marcelo Rubens Paiva escreve que sua família sempre foi descrita como “a família vítima da ditadura”, mas que os próprios Paiva preferem “uma das famílias vítimas das muitas ditaduras”, localizando-a, como em um jogo de escalas, em um país – este sim vítima da ditadura – e no mundo: “O crime foi contra a humanidade, não contra Rubens Paiva. Esse pai que morreu duas vezes, uma em razão da tortura a que foi submetido, em 1971, e outra por decreto, com base na Lei dos Desaparecidos, em 1995.
“Ainda estou aqui”, o filme, não está só – está em boa companhia: faz parte de uma linhagem de filmes que tematizaram a ditadura. Pensemos em “Lamarca” (1994), “O que é isso, companheiro?” (1997), “Zuzu Angel” (2006), “Marighella” (2019/2021). Lembremos dos porto-alegrenses “Deu pra ti, anos 70” (1981) e “Verdes anos” (1984), e mesmo dos curta-metragens “O dia em que Dorival encarou a guarda” (1986) e “Sargento Garcia” (2000). Maior ou menor, dependendo da circunstância história e da proposição e alcance de cada obra, todas tiveram a sua importância. O impacto de “Ainda estou aqui”, no entanto, é enorme, muito, muito maior – e ainda está em expansão, neste exato momento.
2015, o ano de publicação do livro, é o ano do golpe efetivado sobre o governo de Dilma Rousseff – e a história editorial do livro, em direção ao filme, acompanha um tempo em que o Brasil e o mundo passam a conhecer (não que isso fosse algo inteiramente novo) a ascensão de forças políticas de direita, de extrema-direita e mesmo fascistas, ou neofascistas. Em 2024, o ano de lançamento do filme, essa ascensão, não sem forças contrarrestantes, é verdade, ainda se encontra viva e chutando. Livro e filme, e notadamente o filme, assistido no mundo, se afirmam como uma só “pièce de resistance”, como dizem os franceses, nesse cenário pré-apocalíptico (ou já apocalíptico?). Narrativas que têm o seu próprio mérito como obras de arte, é claro, mas que transcendem sua relevância estética, a exposição de um trauma, transformam-se em manifestos, monumentos, obras-acontecimento, cartazes erguidos em todas as praças de maio, armas de luta, “armas do discernimento”.
As imagens de pessoas deixando as salas de cinema aos prantos apontam para esse trauma partilhado, essa ferida cuja cicatrização nunca terminou (trauma é “ferida”, em grego). São o termômetro desse impacto.
Você viu o filme “Ainda estou aqui”? Como avalia a obra do ponto de vista histórico?
Sim, vi o filme e, como diria o Julinho da Van, do “Choque de Cultura”, “falo com tranquilidade”: faço parte dos que não conseguiram, ou nem tentaram segurar as lágrimas durante sua projeção e depois.
Cinema, literatura, literatura de memória (o caso do livro de Marcelo Rubens Paiva) e historiografia são coisas diferentes e uma não “deve” nada à outra. Haverá filmes cujo roteiro é adaptado de livros, peças de teatro, histórias em quadrinhos, jogos eletrônicos, “you name it”, e que terão uma maior preocupação com a “verdade histórica” (o termo é problemático, para se dizer o mínimo) – mas isso será uma escolha estética, estético-ideológica, artística, e tal; e não um elemento de definição sobre o filme estar “certo” ou “errado” (excetuando-se casos de falseamento histórico aberto). Um exemplo: lembro que, quando do lançamento de “A Guerra de Canudos” (1996), houve quem reclamasse que o tipo de calçado que os habitantes de Canudos usam no filme não poderia ser aquele... Por outro lado, e com muito mais qualidade, há quem afirme que “Bacurau” (2019) é uma releitura livre, anarquista, de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Quem sabe? Super contraintuitivo, não é mesmo?
O marxista húngaro Georg Lukács propõe que literatura histórica não é necessariamente aquela que trata de “fatos” ou de momentos históricos, de personagens históricos, com algum grau de ficcionalização – mas aquela literatura que propõe uma ideia (uma filosofia, uma teoria) sobre o que seja a história. Marcelo Rubens Paiva, no livro, aborda o trauma pessoal, familiar, brasileiro, humano, recorrendo a duas metáforas sobre memória. Numa delas, e em relação a certa rua de São Paulo, traz a palavra indígena “Turiaçu”: “Turi”, e “açu”, grande. Turiaçu é um rio no Maranhão, e essa fogueira, esse “turyassu”, seria feita em um lugar elevado para que servisse como um farol que pudesse ser visto de longe pelos pescadores de camarão no mar. Uma luz que “iluminava o caminho de volta para casa, para a aldeia, para as famílias.” Na outra, observa que a memória não é uma “história contada” de um modo e para sempre, uma pedra com “hieróglifos entalhados”. A memória seria algo que lembraria a dinâmica plástica de dunas de areia, com grãos que se movem em ângulos e desenhos que se modificam, “transferem-se de uma parte a outra, ganham formas diferentes, levados pelo vento.”
O filme possui uma narrativa linear – do passado para o presente; o livro, ao contrário, faz um vai-e-vem no tempo, mais como a nossa memória funciona, e, de modo mais imprevisível e mesmo caótico, a memória de quem sofre de Alzheimer, o caso de Eunice Paiva em seus últimos anos de vida. É interessante notar que o primeiro capítulo do livro se chama “Onde é aqui?”, uma pergunta que Eunice fazia recorrentemente, em razão da doença. Pode ser que a cidadania brasileira também se pergunte, ou deva se perguntar: onde é aqui? Uma nação inconclusa, interrompida, desmemoriada. Ou se pergunte, em complemento, como com Affonso Romano de Sant’Anna e Renato Russo: que país é este?
Eu vejo a tela de cinema, sobretudo em casos como o desse filme, como um turyassu: o cinema, o filme, como uma fogueira que nos lembre e que forneça coordenadas sobre em que ponto do caminho estamos, em torno da qual podemos nos sentar para ouvir uma história de passado que insiste em não passar, que acenda uma luz para que a gente não tope com o dedo mindinho no pé da cama da história, no escuro.
Em sua experiência na docência, você percebe que os estudantes chegam à universidade com um correto entendimento do que representou o período de ditadura militar na história do Brasil?
Na melhor das hipóteses, no melhor cenário – em casos em que houve um trabalho razoavelmente bom na Escola Básica, ou em que a pessoa, às vezes mais velha, buscou por si própria alguma informação/formação -, o/a estudante chega à universidade com o mesmo conhecimento com que chega sobre outras “histórias”. Poderíamos, talvez, falar em um “senso comum dos historiadores”, uma história do tipo “e aí”: “E aí o Jânio Quadros renunciou, e aí o vice era o João Goulart, o Jango, e aí os militares e as elites não queriam que ele assumisse, e aí o Leonel Brizola fez a Campanha da Legalidade, e o Jango assumiu, mas em um regime agora parlamentarista, no qual ele não tinha os mesmos poderes que teria no presidencialismo, e aí vieram as Reformas de Base, e aí veio o Golpe de 64...”, e assim por diante. Durante a graduação, é preciso que haja um esforço para quebrar esse tipo de “conhecimento histórico” excessivamente factual e calcado em uma história política convencional, de vários modos ultrapassada. É preciso que haja um aprofundamento historiográfico, teórico, metodológico, um aprofundamento em termos das possibilidades de ensino de História, e tal.
Agora: nestes tempos difíceis que vivemos, aquele aluno/a que eu apresentei ali está bem, não está? Não passou nas nuvens pela Ensino Médio, e pode até ter uma visão crítica, bem informada, sobre o sentido, ou os sentidos históricos, da Ditadura. Estou procurando ser otimista. As lacunas trazidas, de um modo geral, por qualquer estudante, de qualquer nível, são enormes e são um problema do sistema educacional e do tipo de vida e de mundo que estamos experienciando – “esse admirável mundo novo” cheio de setas apontando para futuros concebíveis e inconcebíveis, e cheio de passados que até não muito tempo atrás pensávamos haver superado.
E na pior das hipóteses, no pior cenário? Nesse caso, o conhecimento trazido é super fragmentado e impreciso, ou mesmo inexistente (se é que, paulo-freireanamente pensando, podemos falar em “conhecimento inexistente”). Nos últimos anos, é verdade, entram estudantes informados, ou desinformados, pela Internet e pelas redes sociais e pelo estilo de debate que se estabelece ali, um debate do tipo “quem saca mais rápido”, um tanto estranho à vida acadêmica. É um outro elemento no caldeirão do tempo presente.
De todo modo, a universidade ela mesma - uma fogueira muitas vezes das vaidades – precisa ser uma fogueira no sentido de um turyassu. Uma fogueira decente, com função e propósito. A aula de História como uma reunião em torno de um fogo-de-chão comunitário. O professor/a como um xamã. Como observou o poeta William Butler Yeats, “educar não é encher um cântaro, mas acender um fogo.”
Quais você considera que são as consequências, especialmente entre os jovens, da falta de conhecimento sobre a história de forma geral? Esta “onda” de conservadorismo e extremismo observada nos últimos tempos pode ser uma consequência disso?
O jeito fácil e muito provavelmente verdadeiro de responder a isso é “sim”. Sim. Uma resposta que pode envolver um espírito de manifesto, um gesto de punho erguido, uma coisa do tipo “lembrar para que nunca mais aconteça”. Às vezes soa honesto e genuíno, às vezes soa um tanto demagógico, um tanto “jogar para a torcida” das comunidades acadêmica e intelectual. De todo modo, parece fazer sentido, não parece? Em sua “História”, Heródoto – na primeira página! -, já explorou, talvez ineditamente (teríamos de ver outras histórias e mitologias, dar uma olhada nos chineses), a relação entre memória – esse “lembrar” – e as “gerações futuras”. “Isto que irei relatar, irei relatar para que seja lembrado”, algo assim, cito de memória.
O século XXI, no entanto, para mal e para bem, e sobretudo nos últimos dez, doze anos, tem sambado na nossa cara. As novas dinâmicas culturais, envolvendo as novas tecnologias, e tal, têm mostrado – como se já não soubéssemos há tempos – que o nexo entre lembrar e “não acontecer mais” é, para dizer o mínimo, delicado. Nunca houve tantos trabalhos acadêmicos sobre a Ditadura como os há hoje (ainda bem!), e o acúmulo de livros sobre a Ditadura, e sobre o antes, e sobre o depois, já preencheriam uma Alexandria; no entanto, só não sofremos um novo golpe em 2022-2023 porque os golpistas não souberam ou puderam articulá-lo suficientemente bem. Essa “memória” trabalhada historiograficamente em dissertações e teses, em artigos, em livros, deveria chegar, feitas as traduções pedagógicas necessárias, ao livro didático, aos/às estudantes, e, assim, à sociedade – mas esse caminho, também ele, tem mediações complexas. A História Pública, esse relativamente novo campo da História, está aí, também, para fazer, a seus modos, esse mesmo trabalho. E, ainda, aquele “lembrar” precisa ser um elemento de uma práxis política ética, que preserve e proteja a ideia de mundos democráticos e diversos que queremos cultivar – e salvar, no limite. Um “reerguimento do céu”.
Enfim: haveria muito a se ponderar. Eu teria de responder à pergunta com um “sim” simples. A própria “tese” de “Ainda estou aqui” estaria a meu lado. Mas eu respondo com um grilo cri-cri-cricando na orelha. Em tempos de pós-verdade, as batalhas que estamos travando podem estar ocorrendo em um campo de guerra que não é o campo do saber versus não saber. A nossa fogueira de localização e memória, o nosso turyassu, está instável, bruxuleando.
Como você avalia que expressões artísticas, como o cinema, podem contribuir para a narrativa de fatos históricos?
Para responder com o filme de que estamos tratando, sendo essa fogueira, esse turyassu. Vamos imaginar um cidadão/ã médio assistindo ao filme, no cinema ou, daqui a um tempo, em casa. Sua “memória”, seja ela pessoal ou histórica, será modificada, mexida, tensionada, como naquela imagem das dunas de areia, de Marcelo Rubens Paiva, que mencionei acima. Pensemos no alcance de um filme, muito, muito maior que o alcance de um livro: temos aí um tipo de contribuição.
É preciso considerar, no entanto, duas coisas: o “discurso” das artes é uma coisa, e o “discurso” da História, outra. A arte, mesmo a arte engajada, é livre em relação à História. Inclusive, a arte pode contribuir problematizando a história, com “h” maiúsculo ou minúsculo (usa-se o maiúsculo quando se trata da “matéria” História) – e o faz o tempo todo.
Outra: um filme não é uma aula de História. Um filme pode ser um instrumento escolhido para uma aula de História, situação em que estaria subordinado à concepção da aula, ao/à docente, mas ele mesmo não o é.
A relação cinema e história é sempre positiva? Caso a resposta seja negativa, poderia nos dar bons e maus exemplos desta relação?
Eu diria que essa relação é singular, como qualquer outra. É singular e específica – ambos os “campos” são relativamente livres um em face do outro. Uma vez compreendida essa singularidade e essa especificidade, e essa liberdade, tudo está “pra jogo” nos multiversos das interpretações. No semestre passado, em uma disciplina chamada “História Contemporânea I”, um aluno, o Eduardo Bianchi, perguntou o que era, para mim, um filme bom, ou um filme ruim. Havíamos assistido e estávamos trabalhando, no escopo da disciplina, ao “Frankenstein de Mary Shelley”, o filme de Kenneth Brannagh, de 1994. É claro que eu transformei a pergunta em um diálogo com a turma sobre a questão – mas confesso que me embananei: o que é um filme ruim, ou bom? Cada um de nós pode responder a isso de diversos modos. Eu, de minha parte, acho que um filme ruim é um filme que é desonesto intelectualmente, forçador de mão, manipulador da “suspensão da descrença” do espectador/a. De resto, um filme será só melhor ou pior realizado. E, ainda, nossa relação com ele pode se dar no campo da memória e das emoções, dos afetos. Um filme pode ser uma madeleine de Proust.
Darei um exemplo: “300”, o filme de Zack Snider de 2006, feito com base na história em quadrinhos de Frank Miller e inspirado em Heródoto, é, hoje mais que ontem, um filme a respeito do qual levanta-se uma muralha crítica: masculinidade tóxica, uma guerra contra um “Oriente” abjeto e que representa uma ameaça contra a liberdade, que é grega, a Grécia como um pilar civilizacional incontestável... quer dizer, tudo de ruim, e tudo isso, e mais, bem ali, no início deste século que não vai nada bem de saúde em tantos níveis. Os próprios estudos sobre Antiguidade “Clássica”, greco-romana, tornaram-se, hoje, agenda olavista nas universidades – contra uma contemporaneidade “degenerada”, um tipo de “entrismo” de extrema-direita. Todo cuidado é pouco.
Agora: eu não acredito que Zack Snider estivesse consciente de todos esses elementos em seu filme (sobre Frank Miller, poder-se-ia discutir) – mas ele, o filme, “um produto de sua época”, como se diz (às vezes ingenuamente), envelheceu mal. E, já em seu tempo, foi contestado. “Isso é sobre a guerra do Iraque?” É um filme, porém, que faz parte de um “pacote” de filmes do fim dos anos 1990 e do início dos anos 2000 que eu vejo e revejo sempre, com o mais puro prazer cinéfilo e de pipoca de microondas. O que posso dizer? It’s complicated...
“300” pode ser “passado” em sala de aula? Pode e deve, mas com o Edward Said, o Foucault e a Isabela Boscov presentes, dando uns pitacos.
Como a arte pode contribuir com a ciência?
Em diálogo e troca. As artes têm tanto de ciência, não têm? As ciências têm tanto de arte, não têm? Sempre que essa questão é de algum modo posta, eu lembro de um livro e de um autor hoje infelizmente esquecidos: “As duas culturas”, de C.P. Snow, um ensaio de 1959 – meio “pai” das discussões sobre transdisciplinaridade e pensamento complexo depois tocadas por Edgar Morin, por exemplo – que sustenta a tese de que o Ocidente vive uma separação radical entre artes e ciências (as duas “culturas”), e que isso tem travado o desenvolvimento de ambas, para mal de todo mundo. Um especialista em Mecânica Quântica não sabe nada de Shakespeare, e um especialista em Cinema Noir não sabe nada de Darwin. Em vez da hiperespecialização, o hiperentrelaçamento – ou, no mínimo, uma relação dialética entre esses dois universos, para ver que bicho dá. Se a médica que me atendeu estiver com um livro do Ailton Krenak sobre a mesa é melhor, não é? O joelho até para um pouco de doer...
Eu recomendaria esse livro – desejando que haja um reaquecimento do tema da transdisciplinaridade (ou o nome que isso tenha hoje), tão necessário para enfrentarmos o fim do mundo estando pelo menos epistemologicamente bem armados.